Como se constrói um santo?

O Cientistas descobriram que… convidou o Prof. Dr. Igor Salomão Teixeira, pesquisador de história medieval da UFRGS, para contar-nos sobre os resultados de suas pesquisas recentes, publicada no livro Como se constrói um santo.

Por Igor Salomão Teixeira                                                                                                                    Prof. Dpto. de História – UFRGS

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Igor imagemEssa pergunta pode soar estranha. Afinal, santo é santo: ou você acredita ou você não acredita. Certo? Depende. Há alguns anos pesquisadores se dedicam a pensar e a responder por que as diferentes sociedades acreditam em pessoas com poderes especiais.

As respostas têm uma direção comum: o santo não é um fenômeno dado, que sempre existiu. A santidade é um fenômeno construído coletivamente: é necessário um elemento de culto (uma pessoa, um osso, uma roupa, sepultura etc) e pessoas que desenvolvem e transmitem esse culto (nos nomes dos filhos, doações de terras, procissões, templos). Podemos identificar “santos” e cultos sob diferentes aspectos em diferentes culturas e religiões.

Você já deve ter ouvido falar de Frei Galvão, Padre Cícero, Nhá Xica, Odetinha e do santo surfista. Não? Essas pessoas têm em comum o fato de serem brasileiras e de terem sido escolhidas, pela comunidade e pela Igreja Católica, como santas. Frei Galvão já foi canonizado. Padre Cícero está em processo de restabelecimento na Igreja, Odetinha, Nha Xicá e o santo surfista estão em investigação, com possibilidade de abertura do processo de canonização. Canonização, restabelecimento, processo: o que isso quer dizer?

Desde o início da era cristã, pessoas foram cultuadas e/ou cultuaram homens e mulheres. Foi principalmente a partir do século XIII que a Igreja Católica instituiu um procedimento jurídico de investigação para decidir quem podia, ou não, ser cultuado como santo. A canonização é, portanto, um reconhecimento oficial por parte do papa sobre a santidade. Isso não significa dizer que só é santo quem é canonizado. O caso do Padre Cícero, no Brasil, é singular. Padre Cícero foi excomungado da Igreja no início do século XX. Com o avanço das religiões neopentecostais no Nordeste, a Igreja Católica iniciou, nos últimos anos, um processo de reabilitação de Padre Cícero, visando uma possível canonização em alguns anos. O principal objetivo é tentar conter a fuga de fieis para outras religiões. Um personagem conhecido que está intimamente envolvido com essas práticas é o do Papa Bento XVI, desde a época em que ainda era cardeal, no pontificado de João Paulo II.

O processo de canonização tem como objetivo verificar se a fama de santidade atribuída a uma pessoa procede. Para essa fama o mais importante é a ocorrência de milagres. Um milagre pode ser definido como um evento excepcional, geralmente relacionado à cura de doenças que não pode ser explicado cientificamente. Na Idade Média, os primeiros sinais de santidade são geralmente atribuídos ao odor de santidade. Era uma espécie de cheiro agradável, de rosas, que impregnava nos lugares próximos aos túmulos dos candidatos a santo. No processo de canonização de Tomás de Aquino, realizado em 1319, por exemplo, existem alguns relatos de monges que testemunharam esse “suave perfume de rosas” na abertura do túmulo para a realização de um traslado do corpo. Havendo a fama, pessoas interessadas em desenvolver o culto pedem ao papa a abertura do processo. Se julgar procedente, o papa ordena a investigação e nomeia responsáveis por conduzi-la. Pessoas são convocadas a dar seus testemunhos, são redigidas atas e essas são avaliadas por uma comissão. Sendo o parece favorável, o novo santo deve ser incluído no catálogo de festas dos santos e o culto passa a ter autorização para ser realizado em todas as igrejas. Por isso que partimos do princípio que a santidade é construída coletivamente

No desenrolar dos processos estão envolvidas questões como: de onde é o candidato a santo? Quem está fazendo o movimento para pedir ao papa a canonização? Quem vai pagar o processo? Quem são as testemunhas interrogadas? Elas conheceram o santo? Foram curadas ou ouviram contar?

A canonização de Tomás de Aquino ajuda a entender essas questões. Grande nome da Igreja nos dias atuais, esse teólogo viveu entre 1224-1274 e foi canonizado em 1323 após dois inquéritos realizados em 1319 e 1321. Foram interrogadas 144 pessoas, quase nenhuma delas cita as obras que ele escreveu. No entanto, Tomás é mais conhecido por obras como a Suma Teológica, do que pelos milagres que fez. Você já ouviu falar do milagre atribuído à cabeça do teólogo, que foi colocada sobre as pernas de uma mulher que não andava? Pois então!

No início desse trabalho, suspeitávamos que o principal interessado em canonizar Tomás era alguém que conhecia mais o que ele tinha escrito, do que aquilo que estava sendo atribuído aos seus restos mortais. Chegamos ao nome de João XXII, papa entre 1316 e 1334. Este papa esteve envolvido em conflitos com alguns franciscanos que questionavam o luxo e o excesso de propriedades da Igreja (tema tratado no livro/filme O Nome da Rosa). Tomás de Aquino, anos antes, escreveu que os representantes máximos da Igreja precisavam de posses, pois, só assim conseguiriam atender aos pobres. Ou seja: o papa precisava de propriedades. Como Tomás e sua canonização se relacionam com essa história?

Tomás tinha sido alvo de condenações. Em 1277 (mesmo depois de morto suas ideias foram condenadas) o bispo Estevão de Paris, publicou 219 teses que estavam proibidas de serem ensinadas até que devidamente corrigidas. Algumas dessas teses são de Tomás de Aquino. Nenhuma delas está relacionada à posse de bens pela Igreja. No nosso entendimento, o papa João XXII precisava encontrar alguma autoridade que defendesse as propriedades da Igreja. Encontrou em Tomás de Aquino. Como suas ideias estavam condenadas, canonizou-o. Dois anos depois, em 1325, as condenações de 1277 foram anuladas.

Respondendo: como se constrói um santo? Com um grupo interessado em uma causa que pode não estar diretamente relacionada à crença nos milagres e na veracidade dos mesmos. Não discutimos se os milagres são verdadeiros, mas como a crença em torno deles é construída e estabelecida para a afirmação de “verdades” que são definidas por quem tem o poder de fazer isso.

Para saber mais, veja o livro Como se constrói um santo, de autoria do Prof. Igor Salomão Teixeira

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