Por Ricardo Ruiz Mazzon, Dpto. de Microbiologia, UFSC

Nas décadas de 1960 e 1970, as sociedades encontravam-se em plena mudança comportamental e cultural, influenciadas pelo pós-guerra, revoluções tecnológicas, dentre outros fatores. Uma das consequências destas mudanças foi uma maior liberdade sexual comparada aos padrões sociais anteriores.
Junto à liberdade sexual também veio o aumento da incidência e prevalência de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) que, à época, ainda eram chamadas de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) – esta nomenclatura foi modificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apenas em 2016.
Neste período, doenças como Gonorreia (causada pela bactéria Neisseria gonorrhoea), Sífilis (causada pela bactéria Treponema pallidum subsp. pallidum), Cancro mole ou Cancroide (causada pela bactéria Haemophillus ducreyi), Clamídia (causada pela bactéria Chlamydia trachomatis) e Herpes (causada pelo vírus da herpes) reinavam absolutas no escopo das ISTs. Os tratamentos para as infecções bacterianas, dentre essas ISTs, ainda eram bastante simples e curativos, tendo em vista a ainda baixa abundância de bactérias resistentes aos antimicrobianos utilizados nesses tratamentos.
Já na década de 1980, o mundo ficou aterrorizado por uma doença sobre a qual nada ou muito pouco se sabia. Pessoas jovens começaram a adoecer de infecções virais, bacterianas e fúngicas das mais diversas e que, outrora não eram suficientes para muitas vezes sequer causar uma infecção sintomática.

Essa situação causou desespero na população e muito estigma e preconceito. O desespero advinha da observação de amigos, colegas de trabalhos e familiares perdendo a vida em unidades hospitalares por infecções simples contra as quais seus corpos haviam perdido a capacidade de lutar contra. Este desespero era alimentado pela falta de informações reais e confiáveis sobre a etiologia e meios de transmissão da doença, e pela ausência de tratamentos eficazes, o que acabava por ser uma sentença de morte àqueles diagnosticados com a doença. Já o estigma se dava porque o primeiro evento epidêmico aconteceu nos EUA, após uma festa destinada ao público homossexual, o que erroneamente acabou a levar muitos da população leiga a chamar a doença causada pela infecção pelo vírus HIV (sigla que em português significa Virus da Imunodeficiência Humana) de “Praga Gay” ou “Doença Gay” mesmo que, tempos mais tarde, tenham sido confirmados os primeiros casos em pacientes heterossexuais. Esse equívoco resultou no aumento dos casos de homofobia e também em outro efeito bastante negativo: heterossexuais não acreditavam que seriam contaminados em relações sexuais desprotegidas e, por isso, não utilizavam preservativo em suas relações, contribuindo para a disseminação da infecção. Vale lembrar que o uso de preservativo foi preconizado assim que se descobriu que o principal meio de transmissão era a via sexual.

O primeiro passo na luta contra o HIV foi o isolamento da partícula viral e sua identificação, em 1983, pelos cientistas evidenciando, assim, o agente infeccioso responsável pela queda bastante acentuada na capacidade de defesa do organismo contra infecções em geral.
Descobriu-se que esse vírus matava células de defesa dos nossos organismos e, por isso, infecções antes tidas como simples e sem grandes chances de complicações, tornavam-se mortais. Nos anos seguintes muitas vidas foram ceifadas pela infecção até que os primeiros tratamentos farmacológicos efetivos surgiram impedindo a replicação do vírus, enquanto os medicamentos eram administrados ao paciente. Nessa etapa, as medicações eram compostas por inúmeros comprimidos (chamado de coquetel anti-HIV) de tomada diária e com efeitos adversos bastante intensos, como diarreia e fortes dores de cabeça. Com o passar dos anos e muito investimento em pesquisa, medicações mais eficientes (e.g., Dolutegravir, Lamivudina, Tenofovir, Darunavir e etc.) administradas em um ou poucos comprimidos e com um nível significativamente reduzido de efeitos colaterais surgiram, trazendo maior qualidade de vida as pessoas vivendo com HIV. Esses avanços provocaram um aumento da adesão ao tratamento e da expectativa de vida desses pacientes, que, hoje em dia, se assemelha muito à expectativa de vida de pessoas sem comorbidades e que não convivem com HIV.
Essa eficiente supressão da carga viral de pacientes vivendo com HIV para níveis indetectáveis pelos testes atualmente disponíveis levou a uma consequência bastante relevante no combate à disseminação do vírus evidenciada em um estudo de Roger e colaboradores (2016): Pacientes com carga viral indetectável não transmitem o vírus por via sexual, ou seja, indetectável é igual a intransmissível (I=I). Dessa forma, o tratamento de pacientes vivendo com HIV passou a ser uma importante peça no quebra-cabeças de combate à epidemia de HIV. As lacunas remanescentes seriam a testagem com diagnóstico precoce de pacientes vivendo com HIV (de modo a iniciar o tratamento de supressão da carga viral e torná-los intransmissíveis) e a prevenção de contaminação por aqueles vivendo sem o vírus.
No que diz respeito à prevenção da infecção, até pouco tempo, apenas a utilização de preservativo era a opção. Mas eram relatados casos frequentes de pacientes que faziam uso corriqueiro de preservativo, mas não necessariamente em 100% das suas relações, se expondo à contaminação nesses eventos esporádicos de sexo desprotegido.
Pensando nessas pessoas foi desenvolvido um protocolo de profilaxia chamado Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), ou seja, uma prevenção farmacológica combinada ao uso do preservativo por meio da utilização de dois medicamentos contra o vírus HIV.

Desta forma, quando ocorressem esses eventos de sexo desprotegido, tais indivíduos teriam taxas de proteção bastante elevadas, reduzindo a níveis negligenciáveis o risco de contaminação e disseminação do vírus HIV nesses casos. Uma consequência negativa da adesão a PrEP contra HIV foi a redução da utilização de preservativos pelos pacientes, como evidenciado em dois trabalhos publicados (Calabrese et al., 2017 e Ugarte et al., 2023). O temor do aumento da incidência de outras ISTs nesse grupo, devido ao aumento da exposição de risco (o não uso de preservativos), não se concretizou e, inclusive, em alguns estudos como o executado na Alemanha por Schimidt e colaboradores (2022), observou-se uma redução nas ISTs. Uma hipótese para explicar esse dado seria que por conta do aumento da frequência de testagem e tratamento precoce para estas enfermidades houve redução ou interrupção da cadeia de transmissão em muitos casos. Um estudo recente, publicado em 2023 por Luetkemeyer e colaboradores, mostrou que a Profilaxia Pós-Exposição com o antibiótico doxiciclina, que consiste no tratamento com dose única de 200 mg de doxiciclina em até 72h após sexo desprotegido, diminuiu significativamente a incidência de Infecções sexualmente transmissíveis como Gonorreia (redução de 55%), Clamídia (redução de 90%) e Sífilis (redução de 85%). Desta forma, a associação de HIV-PrEP e Doxy-PEP poderia constituir uma valiosa estratégia no controle da disseminação dessas doenças em populações de alta vulnerabilidade e contribuir fortemente no controle das Infecções sexualmente transmissíveis.
Para saber mais acesse:
- HIV Preexposure Prophylaxis and Condomless Sex: Disentangling Personal Values From Public Health Priorities.
- Postexposure Doxycycline to Prevent Bacterial Sexually Transmitted Infections.
- Sexual activity without condoms and risk of HIV transmission in serodifferent couples when the HIV-positive partner is using suppressive antiretroviral therapy.
- Low incidence of HIV infection and decreasing incidence of sexually transmitted infections among PrEP users in 2020 in Germany.
- Evolution of Risk Behaviors, Sexually Transmitted Infections and PrEP Care Continuum in a Hospital-Based PrEP Program in Barcelona, Spain: A Descriptive Study of the First 2 Years’ Experience.