Por Michelle Tillmann Biz – Dpto. de Ciências Morfológicas / UFSC
O dente é conhecido por ser um órgão formado por tecidos duros, sendo eles o esmalte, a dentina e o cemento (veja na Figura 1). Porém, em seu interior, protegido por esses tecidos duros, encontra-se um tecido mole, a polpa dentária. A polpa dentária é um tecido conjuntivo propriamente dito, como o que encontramos abaixo da nossa pele, sendo responsável pela nutrição celular, defesa e reparação, bem como a sensibilidade local. Sendo assim, a polpa dentária é onde encontramos a vitalidade de um dente. Um dente vital possui polpa dentária; um dente que não tem polpa (como os dentes que já tiveram tratamento de canal executado) são dentes desvitalizados. Dessa forma, a polpa dentária é o tecido responsável por toda a fisiologia do dente respondendo aos estímulos de dor, desencadeando a resposta inflamatória bem como a resposta de regeneração e reparação. Sem a polpa dentária, não temos mais esses estímulos.
Muitos destes processos fisiológicos já são muito conhecidos e não diferem de outras partes do corpo. Entretanto, um deles, pelo menos para o dente, permanece obscuro: como os estímulos externos que recaem sobre os tecidos duros do dente (esmalte e dentina) conseguem desencadear a sensibilidade dolorosa lá na polpa?
O fato é que, diferentemente da pele (que recebe estímulos diretos do meio externo em seus sensores), a polpa dentária responde a estímulos dolorosos que são aplicados em camadas grossas de tecidos inertes (dentina e esmalte). Além disso, possui um diferencial dos outros tecidos conjuntivos propriamente ditos: há uma célula no meio deste caminho, o odontoblasto.

Figura 1: Corte histológico de um dente demonstrando os tecidos duros (dentina e esmalte) e a polpa dentária com odontoblastos (coloração: Tricômio de Mallory).
Os odontoblastos formam uma camada de células em contato com a dentina no interior do dente, como um tapete (veja na figura 1). Descobertas recentes têm demonstrado que essas células parecem implicadas na recepção dos estímulos de dor vindo do meio externo, agindo como se fossem fibras nervosas terminais. Essa teoria (sim, ainda está na categoria de teoria – “teoria do odontoblasto transdutor” – pois não está completamente elucidada) está sendo amplamente pesquisada pelos biologistas pulpares que buscam melhor compreender essa célula e desvendar este mistério.
E para compreender o que os biologistas pulpares descobriram recentemente, o primeiro passo é entender como o estímulo do meio externo aplicado sobre o esmalte consegue chegar até a polpa dentária e causar a dor (por exemplo, a fisgada forte que sentimos quando mordemos um picolé ou bebemos algo muito gelado).
A dentina é um tecido duro (70% mineralizado) formado por cristais de hidroxiapatita em um arranjo tubular, ou seja, no sentido esmalte dentina, ela é transpassada por zilhões de minúsculos túneis, chamados de túbulos dentinários (ver Figura 2.

Figura 2: Imagem de Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV) da dentina, mostrando a disposição dos túbulos dentinários (imagem adaptada de Baratieri, 2001).
Esses túbulos dentinários contém no seu interior um líquido (o fluído dentinário) que se encontra em repouso, como um lago com água parada. Porém, quando ele é submetido a algum tipo de movimento (imagine agora uma pedra sendo atirada nesse lago), as ondas do líquido em movimento vão se propagando até chegar à polpa, e assim, desencadeia a resposta de dor (efeito que é chamado de “Teoria Hidrodinâmica de Branstrom”). Vamos usar o exemplo mais comum de dor de dente no nosso dia a dia: morder um picolé. A temperatura da nossa cavidade oral é de 37oC; já o picolé, por estar congelado tem uma temperatura abaixo de zero grau. No momento em que encostamos o picolé na superfície do dente, estamos submetendo os tecidos duros a um choque térmico. Essa alteração brusca de temperatura vai se propagar pelo esmalte até atingir o líquido no interior do túbulo dentinário, o qual vai responder com uma contração de suas moléculas. Essa contração gera uma onda de movimento em direção à polpa. Quando essa onda chegar até a polpa irá desencadear a informação de dor.
Mas o que intriga os biologistas pulpares é exatamente este ponto em que a movimentação do liquido chega até a polpa: quem é o receptor desse estímulo? Seria de praxe responder: um neurônio, afinal, sabemos que os estímulos dolorosos são recebidos e transmitidos pelos neurônios. Mas os Cientistas Descobriram Que… o odontoblasto é um grande candidato a receptor desse estímulo. E é aqui que residem as descobertas atuais.
Pesquisadores descobriram recentemente que os odontoblastos exibem diferentes categorias de canais que estão envolvidos na sensação dolorosa e propagação de sinais, como os vários membros da superfamília de receptores de potencial transitório (TRP) de canais iónicos, dentre eles, receptores de calor (TRPV1, TRPV2 e TRPV3), receptores de frio (TRPM8 e TRPA1), mecano-sensores (TRPV4, TRPM3, TRPP1 e TRPP2); canais iônicos de detecção de ácidos (ASICs) (DEG/ENa1C e proteína ASIC2 e beta-ENa1C); além de canais mecano-sensores de K+ (TREK1). Somado a esses achados, no inicio deste ano (2018), um grupo de cientistas descreveu a presença de mais um mecano-sensor em odontoblastos: o TRPM7. Os pesquisadores relatam que esse receptor tem sua distribuição estratégica para facilitar a sinalização intracelular de Ca2+. Esses achados sugerem o TRPM7 como um transdutor mecânico em odontoblastos para mediar a dinâmica de cálcio intracelular em diversas situações fisiopatológicas que acometem a dentina. Todas essas descobertas recentes tornam os odontoblastos candidatos adequados para detectar estímulos externos de maneira semelhante aos sensores da pele. Entretanto, além da recepção, há a necessidade de transdução desse sinal a uma fibra nervosa adjacente para que a informação de dor seja entendida. E aqui está o grande desafio final: a interação entre as fibras nervosas da polpa e os odontoblastos é ainda uma questão aberta. Por hora, permanece em teoria, mas que, a cada nova peça do quebra-cabeça encaixada, ganha força.
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