Por Rita Zilhão, Faculdade de Ciências de Lisboa, Portugal
Antes de iniciar o texto sobre a descoberta que os cientistas fizeram, eu gostaria, de um modo simples, fornecer três conceitos (para quem eles já forem claros pode passar de imediato ao texto): 1) Para que uma célula eucariótica* se divida e dê origem a duas novas células é necessário que ela passe por uma série de fases que, no seu conjunto, se designa de ciclo celular; 2) De forma a assegurar uma correcta divisão e que tudo corra bem para as novas células-filhas, o ciclo celular está sujeito a uma série de pontos de controle designados “checkpoints”; esses, ao longo das diferentes fases do ciclo celular, aferem as condições da célula e asseguram que a divisão celular ocorra unicamente em condições favoráveis; 3) O genoma corresponde ao conjunto de toda a informação genética que se encontra inscrita na molécula de DNA que, por sua vez, está estruturalmente organizada em cromossomas que se localizam no núcleo de cada célula dos organismos.
Em fevereiro de 2018, escrevi para este blogue um texto que se intitulava “Modulação dos telómeros (em português brasileiro – telômeros) para impedir a sua instabilidade, característica das células cancerígenas e em envelhecimento” e que explicava as particularidades e a composição das extremidades dos cromossomas lineares em eucariotas, e como estes eram protegidos por umas estruturas designadas de telómeros.

Figura 1: Possíveis caminhos de uma célula tumoral após divisão. Modificado a partir do artigo de Ewa Sikora et al., 2016.
Texto
O que pretendo relatar é o contributo de um grupo de cientistas que permitiu relacionar, ainda mais do que já se sabia, uma estrutura tão diminuta quanto as extremidades dos cromossomas, com o surgimento de mutações necessárias ao desenvolvimento do câncer!
Ora bem, os cromossomas quando quebrados ou muito danificados na sua sequência de DNA são tóxicos para a célula e geram aquilo a Figque se chama instabilidade genômica. Contudo, as células evoluíram de forma a detectar e a reparar estas lesões no DNA. Na verdade, dependendo do estado da célula e de muitos outros fatores, e através dos checkpoints do ciclo celular, são desencadeados mecanismos que podem ter diferentes consequências para a célula: paragem transiente (suspensão transitória) do ciclo de divisão da célula de forma a que possa ocorrer, através de vias específicas, a reparação dos danos no DNA; saída definitiva do seu ciclo de divisões; morte da célula. Tudo isto são boas notícias, pois significa que há forma de não perpetuar para as gerações seguintes as alterações cromossómicas (em português brasileiro – cromossômica) e muitas das modificações genéticas que ocorreram na célula mãe.
Todavia, porque os cromossomas dos organismos eucariotas são lineares, duas complicações poderiam surgir: confundir as suas extremidades com DNA quebrado e ocorrer o progressivo encurtamento dos cromossomas após cada divisão da célula. Ups! E agora? Tudo bem, pois ambos os problemas se resolveram porque as extremidades dos cromossomas lineares têm características genéticas e estruturais adequadas à sua proteção – os telómeros – compostos por uma enzima, a telomerase, e por um complexo proteico conhecido como shelterin. Juntamente com outros factores, os telómeros são estruturas protectoras que salvaguardam as extremidades dos cromossomas de sofrerem uma reparação e processamentos inadequados. Quando eventualmente ocorre esta reparação (anormal) nas extremidades dos cromossomas, as consequências podem ser muito diversas: distribuição desigual do material genético durante a divisão da célula; instabilidade genômica; desenvolvimento de malignidade.
Pois é, de facto este estado protector pode ser perdido, por exemplo, devido a alterações no complexo de shelterin ou por falha da capacidade de manter o comprimento dos telómeros, como acontece nas células somáticas*. Nessa altura são activados alguns dos checkpoints celulares e as extremidades dos cromossomas começam a ser encaradas e tratadas como quebras de cromossomas. Iniciam-se várias cascatas de reparação que conduzem a diferentes destinos celulares como a morte celular, ou a um estado, ainda viável, mas em que células que deixam de proliferar – senescência replicativa. É um estado geralmente irreversível e por isso considerado a primeira linha de defesa contra o aparecimento de células de proliferação descontrolada (imortalidade). Porém, se ocorrerem alterações de alguns checkpoints, as células fazem um bypass da senescência e continuam a dividir-se, com os telómeros a tornarem-se cada vez mais curtos, até que as células atingem um estado de extrema disfunção telomérica designada crise replicativa (ou telomérica). Apesar da maioria das células em crise morrer, há umas que escapam. Estas exibem uma considerável instabilidade genômica, perda de controlos por checkpoints e recuperação da capacidade de manutenção de telómeros, via activação da telomerase (que contrabalança o encurtamento dos telómeros e que irá permitir o crescimento celular infinito).
O que Nassour, J. et al. descobriram é que, é justamente durante a própria crise replicativa e o seu bypass que as células adquirem mais mutações genéticas (transformação celular oncogénica), que lhes permitirão ultrapassar a morte celular por autofagia*. Ou seja: a crise replicativa, um período de extrema instabilidade genômica, pode ser restringida por autofagia e, então, ser um poderoso mecanismo de supressão de tumores ou, dependendo de alterações genéticas sofridas neste estado de crise, derivar para um processo de transformação celular que conduz à malignidade e à inerente proliferação celular.
Estes e outros estudos realçam como a carcinogénese é um processo que abarca vários níveis de regulação celular. Tem sido a compreensão dos mecanismos moleculares que interligam a rede de processos implicados nos três grandes marcos do câncer: transformação oncogénica, que agora se acredita que requerem o bypass da crise replicativa e perda da função autofágica; a resistência à morte celular, com a abolição dos mecanismos de morte programada; a imortalidade, com o re-estabelecimento da manutenção dos telómeros, que tem permitido, sem dúvida, um combate mais integrativo eficiente do câncer.
Glossário:
- Eucariotas – organismos eucariotas são organismos ou células que possuem um núcleo e organelos delimitados por membranas. No núcleo estão localizados os cromossomas que contêm a informação genética.
- Células somáticas – são todas as células do corpo excepto as células sexuais.
- Autofagia – processo celular que dá origem à degradação de componentes da própria célula. É um processo estreitamente regulado que desempenha uma função normal no crescimento celular, diferenciação e na homeostase, e é um dos principais mecanismos por meio dos quais uma célula em estado de desnutrição redistribui os nutrientes.