Músculos e Miocinas: um salto para uma vida saudável

Músculos e Miocinas: um salto para uma vida saudável

Por Heiliane de Brito Fontana – Dpto. de Ciências Morfológicas – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Toda forma de atividade física envolve a contração de músculos estriados esqueléticos. Lições aprendidas com a exposição prolongada à microgravidade ou ao desuso nos mostram o quão indispensável é o estímulo mecânico dos músculos para a nossa saúde.

A capacidade dos músculos esqueléticos de se encurtar e produzir força durante a contração advém do deslizamento de miofilamentos contidos nas fibras musculares, as células contráteis do músculo. Esses miofilamentos se organizam como elos de uma corrente no músculo através de unidades funcionais microscópicas chamadas de sarcômeros (do grego Sarx, Sarkos, carne e Meros, parte).

É o alinhamento dos sarcômeros nos músculos que resulta nas estrias presentes na fibra muscular quando observada ao microscópio.

O nome “músculo estriado esquelético” reflete essa organização dos sarcômeros e o fato desses músculos se ancorarem no esqueleto. Os únicos órgãos em nosso corpo sob comando voluntário são os músculos, sendo capazes de gerar a força necessária ao movimento das nossas articulações.

O músculo é, portanto, o motor do nosso corpo. A função contrátil demanda um custo energético e esse custo tem sido ponto central na definição do que é atividade física: atividade física pode ser entendida como qualquer movimento corporal produzido pelos músculos esqueléticos que resulta em gasto de energia. 

Tem se tornado cada vez mais evidente que a atividade física é um elemento essencial na vida diária e crucial para promover saúde, o bem-estar e uma vida mais longeva. O contrário é verdade, a inatividade tornou-se a quarta principal causa de morte em todo o mundo nos dias de hoje. De acordo com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), é recomendado realizar, por semana, um mínimo de 75 minutos de atividade física vigorosa (aquela que faz o coração ficar muito acelerado), ou um mínimo de 150 minutos, se a atividade for de intensidade moderada, para que os efeitos positivos do exercício sejam efetivamente experimentados e os riscos de disfunções crônicas, que afetam nossa saúde física e mental, diminuídos.

Quando se trata da inatividade física e de seu efeito deletério no organismo, amplo reconhecimento tem sido dado ao valor prognóstico e diagnóstico de se avaliar os músculos em variadas disfunções crônicas. A perda de massa muscular contrátil (sarcopenia), resultante da diminuição do volume muscular e/ou da infiltração de gordura e proliferação de tecido conjuntivo fibroso no músculo, tem sido associada a piores desfechos em saúde como doenças pulmonares, cardiovasculares, diabetes e câncer, agravando dramaticamente a carga global de saúde e reduzindo a expectativa de vida das pessoas.

Ter músculos fortes e saudáveis é, portanto, um indicador de saúde e longevidade. Inclusive, as recomendações de atividade física sugerem a inclusão de pelo menos dois dias de atividades de fortalecimento na semana. Musculação, treinamento funcional e exercícios com a carga do próprio corpo são algumas das opções. 

Mas será que o valor diagnóstico do músculo está exclusivamente ligado à sua função como motor do nosso corpo? Seria o músculo apenas mais um órgão afetado por consequência dessas doenças crônicas ou… poderia ele contribuir de maneira mais sistêmica nesses cenários? 

Cientistas descobriram que o músculo esquelético, além de motor do nosso corpo, funciona como órgão endócrino, produzindo centenas de substâncias bioativas chamadas hoje de miocinas. Essas substâncias influenciam o próprio músculo (ação autócrina), outras células ou tecidos próximos (ação parácrina), e até mesmo órgãos e tecidos distantes através da corrente sanguínea (ação endócrina). Portanto, o músculo esquelético não atua apenas como o motor responsável pelos nossos movimentos, mas também desempenha papéis sistêmicos importantes na regulação e comunicação celular dentro do organismo. 

As evidências de que os músculos possuem função endócrina começaram a aparecer no início dos anos 2000, sendo que a interleucina 6, uma proteína sintetizada pelas células musculares durante a contração, foi a primeira miocina identificada. A constatação de que essa substância regula processos chaves associados à transdução de energia em nosso corpo abriu portas para a investigação de outros fatores liberados pelos músculos e dos efeitos desses nos mais variados órgãos. 

 A diagram of human organs

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São centenas de miocinas liberadas pelo músculo esquelético. Dentre elas, a irisina, às vezes chamada de o “hormônio do exercício”, tem recebido bastante atenção. Essa substância parece capaz de potencializar os efeitos benéficos da prática de atividade física, atuando, por exemplo, na regulação do metabolismo e na proteção contra doenças metabólicas e neurodegenerativas. Efeitos positivos na cognição, no metabolismo de carboidratos e gorduras, na formação de tecido ósseo, na função das células endoteliais, na estrutura da pele, em tumores, entre outros, já foram associados a miocinas produzidas pelo músculo esquelético.

A pesquisa nessa área oferece novos insights para a compreensão de como a função musculoesquelética desempenha um papel diagnóstico e prognóstico tão significativo no tratamento e prevenção de doenças crônicas. Um músculo sadio, resultante da prática de exercício, parece contribuir tanto para a nossa capacidade de se movimentar e produzir força, como também para o controle metabólico sistêmico necessário à modulação da inflamação presente em várias doenças crônicas. Aliás, busca-se hoje entender a integração desses dois papéis: como os mecanismos de produção de força nos miofilamentos dos sarcômeros podem estimular a produção e liberação de miocinas.

Com o progresso da pesquisa, tem sido sugerido que as miocinas podem ser úteis como biomarcadores para o monitoramento da prescrição de exercício para pessoas com, por exemplo, câncer, diabetes, ou doenças neurodegenerativas.

Além disso, conjectura-se que drogas “miméticas do exercício” baseadas nas ações das miocinas poderiam ser utilizadas como alternativa farmacológica em indivíduos que não podem experimentar os efeitos benéficos do exercício ou como coadjuvante para a potencialização desses efeitos.  

É importante mencionar que o entendimento acerca das miocinas e seus papéis nos mais variados processos fisiológicos do organismo é um campo de pesquisa em pleno desenvolvimento. As miocinas representam um recorte do complexo fenômeno biopsicossocial que envolve a prática de atividade física no mundo contemporâneo. Cerca de um terço dos adultos em todo o mundo não atendem à intensidade mínima ou ao tempo de atividade física recomendados pela OMS. Nas crianças e adolescentes esse número passa dos 80% de jovens insuficientemente ativos. Portanto, incentivar a prática de atividade física torna-se prioridade nas políticas de promoção da saúde.   

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