As angústias “não” inscritas no DNA de Beethoven

Por Giordano W. Calloni – Dpto. de Biologia Celular, UFSC

No ano de 1801, Ludwig van Beethoven (1770-1827) publicou a famosa Sonata quase uma fantasia, op. 27, n. 2, a qual rapidamente atingiu um status mítico. O leitor provavelmente a conhece sob o nome de “Sonata ao luar”, título atribuído pelo crítico Ludwig Rellstab (1799-1860), cerca de cinco anos após a morte de Beethoven. O crítico comparou a música a um luar espelhado sob as águas trêmulas do lago Lucerna. Tal comparação foi adotada como apelido para a obra. Esta música é composta por três partes (chamados movimentos), sendo que a primeira, via de regra, é a mais conhecida popularmente.

Compartilho o link dos três movimentos interpretados por um dos maiores pianistas do Brasil, Nelson Freire.

Segundo Jan Swafford, um dos grandes biógrafos de Beethoven, a sonata é dedicada a Julie Guicciardi. Nas palavras de Jan: “se este é o adeus de Beethoven a ela, é de partir o coração – mas acaba em fúria e resistência” (Beethoven, angústia e triunfo1, página 296). Swafford tem razão, o primeiro movimento é recheado de mistério e tragédia, já o terceiro, e último movimento, é de uma revolta avassaladora. 

Se existe uma música que possa encarnar toda a angústia, tormento e revolta de uma vida, com certeza ela é a Sonata quase uma fantasia. Beethoven viveu exatamente assim: atormentado física e psicologicamente, como atesta uma carta dedicada a seus irmãos e chamada de Testamento de Heiligenstadt, descoberta um dia após sua morte sobre sua mesa. E seu maior tormento sem dúvida foi sua progressiva surdez.

A surdez pode ser classificada de maneira geral em duas formas: a sindrômica e a não-sindrômica. A surdez sindrômica recebe esse nome pela própria definição de síndrome: um grupo de condições clínicas que ocorrem em conjunto. Assim, a surdez sindrômica é a surdez acompanhada de outras manifestações clínicas (i.e. malformações em outros órgãos). Já a surdez não-sindrômica é a surdez isolada, ou seja, ela é a única manifestação clínica presente no indivíduo. 

Segundo Antônio Victor Campos Coelho, pesquisador envolvido no Projeto Genomas Raros – uma iniciativa do Ministério da Saúde e do Hospital Israelita Albert Einstein, para cada 100 crianças nascidas surdas no Brasil, por volta de 20 são surdas por causas genéticas (20%). Para as outras 80 (80%), a causa da surdez é muitas vezes incerta, podendo envolver fatores ambientais como infecções durante a gravidez por exemplo.

Beethoven nasceu com sua audição perfeita, ou seja, uma surdez não congênita, mas ela começou a ser afetada em 1798. Ele contava então com 28 anos.

Várias hipóteses se estabeleceram para entender a surdez do compositor. Uma delas, relatada pelo próprio músico, descreve que ele estava em seu apartamento discutindo sobre música com um tenor. O tenor saiu, mas logo depois voltou, batendo à porta enquanto Beethoven estava ocupado compondo. Beethoven pulou de sua mesa e caiu de cara no chão, apoiando-se nas mãos. “Me encontrei surdo, e assim estive desde então”, disse ele.

Se foi naquele momento de fúria que a surdez se manifestou pela primeira vez, ele ainda não estava completamente surdo, ou só ficou assim por um período curto. O acesso de raiva teria sido apenas o gatilho e não a causa da surdez, pois ela foi progressivamente sendo perdida. Como a perda foi gradual, outra hipótese seria o envenenamento progressivo por chumbo, talvez proveniente dos sais de chumbo adicionados ao vinho barato como adoçante naquela época; ou contêineres de chumbo para vinho. Outra hipótese seria o tifo ou alguma outra de suas doenças, como a varíola contraída na infância. 

Agora, quase 200 anos após sua morte, ocorrida em 1827, os cientistas, de posse de algumas mechas de cabelo do compositor, voltaram a se questionar: estariam as causas de sua surdez inscritas no seu DNA?

Foi com este intuito que Tristan Begg e colaboradores2 extraíram e, analisaram, o DNA de oito mechas de cabelo supostamente provenientes das madeixas do célebre compositor. Das oito amostras analisadas, sete produziram DNA suficiente para interpretação, e, os autores do estudo descobriram, surpreendentemente, que duas das sete amostras de cabelo atribuídas ao compositor mostraram na verdade serem oriundas de uma mulher e, portanto, não passaram no teste de autenticidade. Importante mencionar que análises toxicológicas de cabelos extraídos dessa mecha feminina foram usadas no passado para argumentar que os problemas de saúde de Beethoven foram causados ​​ou agravados pelo plumbismo (ou seja, a suposta intoxicação de chumbo no vinho que bebia). 

Mas e o que revelaram as cinco outras mechas de cabelo que possuem altíssima confiabilidade (histórica e molecular) como pertencentes à Beethoven?
Os autores afirmam não ter encontrado em suas análises uma causa genética para a perda auditiva de Beethoven. 

Várias doenças foram propostas para explicar a perda auditiva de Beethoven, incluindo otosclerose, a doença óssea de Paget, complicações da doença de Crohn ou colite ulcerativa, sarcoidose, e lúpus sistêmico eritematoso. Semelhantemente aos resultados para a perda auditiva, não foi encontrada uma explicação genética para as queixas gastrointestinais de Beethoven. No entanto, para essas queixas, foi possível tornar menos prováveis ​​alguns diagnósticos importantes. Por exemplo, a doença celíaca e a intolerância à lactose podem quase ser descartadas como causas. 

Importante salientar que os próprios autores dizem que a técnica empregada no estudo possui limitações. Por exemplo, deleções e duplicações gênicas, que demonstraram causar uma proporção relevante de casos de perda auditiva monogênica não sindrômica (surdez causada por alterações em um único gene e sem outras manifestações clínicas), não foram consideradas em suas análises. Além disso, apesar de pouco provável, a hipótese de que a surdez tenha sido causada por uma contaminação por chumbo requer novas análises genéticas/toxicológicas com as mechas autênticas para ser completamente refutada.  

Finalmente, os resultados mais significativos encontrados dizem respeito à doença hepática de Beethoven. Foi encontrada uma predisposição genética substancial para cirrose hepática. Se Beethoven tivesse o hábito de consumir regularmente quantidades suficientemente grandes de álcool, o achado constituiria uma explicação causal plausível para a sua doença hepática. Alguns biógrafos relatam que em certa época de sua vida Beethoven consumia até uma garrafa de vinho por dia.  

Caros leitores, percebam que as letras A-T e C-G, que representam as quatro bases nitrogenadas que compõem o DNA, pouco nos contam a respeito da(s) causa(s) que levaram um dos maiores gênios da música à uma surdez progressiva. Talvez, isso realmente pouco importa a essas alturas do campeonato. O que realmente importa é que toda essa angústia ficou impressa em partituras sob a forma de Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si e que quando expressas em uma determinada ordem, o que comumente denominamos música, são capazes de evocar e revelar toda a beleza e tragédia de uma vida. Ao menos desta vez, o código musical parece revelar mais coisas do que o código genético a respeito de seu compositor. 

Para saber mais acesse:

  1. Jan Swafford. Beethoven: Angústia e triunfo, Editora Amarilys; 1ª edição
  2. Genomic analyses of hair from Ludwig van Beethoven

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