Por Rita Zilhão, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Portugal
Hoje vamos falar da função muscular, ou melhor, da falta do correto funcionamento da função muscular. A que nos estamos a referir? Poderia ser ao que se observa durante o envelhecimento, em que vai havendo um progressivo desgaste e perda de tecido muscular … e que nem a ginástica consegue resolver – e neste caso se está perante aquilo que se designa de atrofia muscular. Ou às diferentes situações de doença em que há uma fragilidade muscular que conduz a uma mobilidade reduzida, progressivamente incapacitante, podendo as pessoas perder a capacidade de se mover.
Estas situações estão associadas aquilo que se designa de distrofia muscular. São desordens que diferem no tipo de músculos afetados, no grau de fragilidade muscular atingido, na evolução da doença e no início dos sintomas. Alguns tipos progridem lentamente; noutros a vida média dos portadores da distrofia é curta. Outros ainda, podem estar também associados a problemas em órgãos como os olhos e o cérebro. Por todos estes motivos, há mais de 30 tipos específicos de distrofias musculares. As distrofias musculares congênitas (Congenital muscular dystrophy – CMD) são um tipo de distrofias em que os sintomas são evidentes desde o nascimento ou pouco depois deste.
“Os investigadores descobriram que…” muitas formas de CMD são causadas por mutações em genes que afetam algumas das proteínas (ex. laminina) envolvidas nas interações entre as células musculares e as estruturas localizadas no ambiente que envolve essas células (a chamada matriz extracelular). Essas descobertas conduziram a uma maior compreensão dessas doenças assim como a avanços nas formas de diagnóstico e estratégias de tratamento. Contudo continua a não existir cura para as distrofias musculares. Recentemente mais um progresso foi feito, dessa feita em relação à determinação do início do desenvolvimento de um dos tipos de CMD – a Merosin-deficient congenital muscular dystrophy type 1A (MDC1A)*. Mas para que possam compreender o alcance deste estudo, temos de compreender como se formam as fibras musculares (ou miofibras).
As fibras musculares esqueléticas* geralmente se formam através da fusão de células progenitoras do músculo, os mioblastos, originando células multi-nucleadas designadas de miofibras. Durante as primeiras fases do desenvolvimento os mioblastos podem assim proliferar ou diferenciar em miofibras. A miogênese, por sua vez, ocorre em duas fases: miogênese primária (ou embrionária) em que os mioblastos proliferam, alinham-se e fundem-se para formar miofibras primárias; e miogênese secundária (ou fetal), que resulta na posterior fusão de mioblastos com as miofibras primárias, dando origem a uma população de miofibras secundárias paralelas às miofibras primárias e mais numerosas. Esta sequência de eventos determina o número de miofibras, e está completa no fim do desenvolvimento fetal na maioria dos músculos esqueléticos do murganho (ou camundongo), modelo animal este muito utilizado nestes estudos. Durante os últimos 2-3 dias do desenvolvimento fetal e depois da formação das miofibras todas, ainda mais mioblastos diferenciam e fundem com todos as miofibras existentes, aumentando o seu tamanho. Sendo assim, durante o desenvolvimento uterino os músculos esqueléticos crescem primeiro por adição de miofibras novas e de seguida por crescimento destas mesmas miofibras.
MDC1A é causada por mutações no gene LAMA2, que codifica a cadeia α2 das lamininas de tipo 211 e 221. A laminina 211 é a forma predominante na membrana basal que envolve as fibras musculares adultas, sendo crucial para a sobrevivência destas. Até há pouco tempo acreditava-se que era a ausência da laminina 211 à volta das miofibras nos doentes MDC1A causava um stress constante nestas células, que progressivamente ficavam danificadas, induzindo ao desgaste muscular, inflamação e fibrose. Contudo, uma vez que as crianças já estão afetadas à nascença, a fraqueza muscular que está na base desta doença, terá surgido durante o desenvolvimento (in utero). Mas porque ainda não estava esclarecido quando e como a doença começava, os cientistas (Nunes et al 2017), utilizando um modelo de murganho mutante que mimetiza a MDC1A humana, conseguiram fazer o acompanhamento do início da doença. Descobriram assim que a miogênese primária progredia normalmente nos embriões mutantes. Contudo, durante a miogênese secundária, detectaram uma deficiência no crescimento dos músculos o que estava de acordo com a observação da diminuição no número normal de células estaminais miogênicas (também conhecidas como células tronco musculares); estas falhavam então na formação de células de músculo, suficientes para sustentar o crescimento fetal das miofibras. Os músculos nos ratinhos mutantes são muito mais pequenos e a sua dimensão não recupera após o nascimento. Estes dados revelaram assim pela primeira vez que MDC1A se inicia durante o desenvolvimento do músculo esquelético, antes do nascimento, pois o ratinho mutante tem um defeito na miogênese fetal, logo in útero, provavelmente como consequência da deficiência na laminina.
Mas qual a relevância deste estudo? A relevância reside na mudança de paradigma relativamente à patogênese de MDC1A: em vez de colocar a deterioração da fibra muscular previamente saudável, como primeiro passo da doença, demonstra-se que a deficiência muscular nos ratinhos mutantes surge devido a um problema ao nível do desenvolvimento, nomeadamente ao nível da miogénese fetal. Estes autores também conseguiram mostrar o papel de duas vias de transdução de sinal*** no início e progressão da doença, o que abre portas para terapias futuras in útero mais dirigidas.
Notas
* MDC1A também é conhecida por laminin-α2 CMD (LAMA2-CMD).
** Músculos esqueléticos são os músculos que constituem a maior parte da musculatura do corpo devertebrados
*** Transdução de sinal é um conjunto de reações bioquímicas que ocorre numa célula em resposta a um estímulo externo e que eventualmente atingirá uma(s) molécula(s) alvo no interior da célula. É assim um processo pelo qual as moléculas no interior da células podem ser alteradas pela ação de moléculas do exterior.
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