Memórias, não são só memórias!

Por Geison Souza Izídio, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

Temos a tendência natural a tratar nossas memórias do passado, como verdades absolutas. Para nós, elas são representações fidedignas de eventos, que se passaram em nossas vidas. Baseados nas nossas memórias podemos inclusive evocar estados de felicidade, ou de sofrimento intenso, no presente.

O treinador de futebol Jorge Sampaoli recentemente iniciou o seu trabalho no comando do Flamengo. Numa entrevista, concedida em junho de 2023, Jorge afirmou, por duas vezes, que se lembrava muito bem da sua primeira vez trabalhando no Maracanã. Teria sido em um jogo onde ele dirigia a “Universidad de Chile” contra o Flamengo de Ronaldinho Gaúcho, em outubro de 2011. Ótima memória para um evento de mais de 10 anos atrás, não? Porém, na verdade, o jogo nunca foi realizado no Maracanã, mas sim em outro estádio, o Engenhão!

Como poderia Jorge ter confundido dois estádios tão diferentes, que ficam a quilômetros de distância? Seriam nossas memórias representações não precisas de eventos passados? Podemos ter lembranças falsas a respeito da nossa própria vida?

Há muito tempo a comunidade científica sugere que existe uma representação física das memórias no cérebro, algo que é conhecido como engrama. Mas há 10 anos, em julho de 2013, cientistas do MIT, nos EUA, revolucionaram a ciência demonstrando, no cérebro de camundongos, que seria realmente possível implantar memórias falsas.

Para realizar esta árdua tarefa, Susumu Tonegawa, prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1987, e seus colaboradores utilizaram uma técnica conhecida como optogenética. Basicamente, na optogenética os cientistas fazem com que neurônios produzam uma proteína chamada “canal-rodopsina”. Quando estes neurônios com “canal-rodopsina” são expostos a uma luz azul, eles se tornam ativos. Ou seja, a técnica de optogenética permite o controle individual das células cerebrais de um organismo vivo.

Então, os cientistas do MIT modificaram células do giro denteado do hipocampo, uma região cerebral envolvida na formação de novas memórias, de camundongos de laboratório. Estes camundongos modificados foram colocados para andar em um compartimento seguro, com piso liso, que eles podiam explorar à vontade. Após isso, os cientistas então “mapearam a memória” do compartimento seguro no cérebro dos camundongos. No dia seguinte, os mesmos camundongos foram colocados em outro compartimento, com piso gradeado. Ali eles receberam um choque elétrico fraco nas patas, para associar o compartimento gradeado com o estímulo nocivo do choque. Normalmente, este procedimento com alto conteúdo emocional faria com que os animais passassem a ter medo do compartimento gradeado, por causa da possibilidade do choque. 

Porém, desta vez os cientistas fizeram algo diferente e inovador. Quando os camundongos estavam no compartimento do choque, os cientistas ativaram os neurônios da memória do compartimento seguro, através da optogenética. Ou seja, no momento do choque, os animais estavam lembrando-se do compartimento seguro! Surpreendentemente, quando os camundongos foram colocados novamente no compartimento seguro, com piso liso, onde não poderiam receber choque algum, eles apresentavam reações evidentes de medo por acharem que tinham levado o choque ali mesmo. Ou seja, uma memória falsa, artificialmente inserida estava criada. 

De 10 anos para cá, esta fascinante área científica da memória vem evoluindo muito. Atualmente, a compreensão das etapas de aquisição, consolidação, evocação, janela de reconsolidação, bem como dos fármacos, que poderão nos livrar dos fantasmas das memórias traumáticas e/ou dos genes envolvidos nestes processos, estão em franca ascensão.

E hoje, na era onde tudo é gravado e documentado em vídeo e áudio, o consenso é que sim, nossas memórias podem nos pregar peças em coisas que nós queremos, ou não queremos saber.

Então, estaria Jorge Sampaoli pensando no histórico Maracanã, enquanto era submetido a alto conteúdo emocional com uma vitória brilhante jogando no Engenhão? Provavelmente, nunca saberemos, pois dependeríamos novamente de uma memória humana para investigar o caso.

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