Shakespeare não foi o autor de todas as suas peças

Pedro Telles da Silveira                                                                                                            Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História – UFRGS

No começo do mês de outubro de 2016, a publicação da nova edição completa das obras de William Shakespeare, pela editora da Universidade de Oxford, chamou a atenção do grande público. Pela primeira vez, outro autor assinou em coautoria um trabalho de Shakespeare. Trata-se do poeta e dramaturgo Christopher Marlowe (1564-1593), cuja carreira literária foi abreviada por sua prematura morte antes de completar trinta anos de idade. Essa é uma descoberta de grande relevância para os estudiosos da obra do escritor britânico e que sela um debate que se arrastava desde o século XVIII, qual seja, se Shakespeare escrevera suas obras junto a algum colaborador e se esse colaborador era Marlowe. Entretanto, como foi possível chegar a essa conclusão?

Ela foi resultado do trabalho de uma equipe internacional composta por 23 pesquisadores coordenada por Gary Taylor, editor-chefe do projeto. Juntos, esses pesquisadores utilizaram computadores para mapear o vocabulário e os recursos estilísticos presentes nas obras de Shakespeare e outros dramaturgos da época, como Marlowe. Após esse mapeamento, eles cruzaram as informações obtidas e perceberam que, ao menos em dezessete peças, havia a presença de traços de estilo compartilhados entre Shakespeare e esses autores. Em um caso, as diferentes versões da peça “Henrique VI”, a presença desses traços era tamanha que se tornava possível apontar a atuação de um coautor: Christopher Marlowe.

Os métodos utilizados pela equipe liderada por Gary Taylor pertencem à filologia, a ciência que procura estabelecer a versão mais acurada dos textos. Atualmente, a filologia é apenas uma parcela dos estudos linguísticos, mas ocupou posição proeminente no desenvolvimento das Ciências Humanas. Em épocas cujos valores morais, culturais e literários provinham da leitura de textos antigos, muitas vezes preservados de forma fragmentada e incompleta, a filologia fornecia uma série de procedimentos para chegar a versões mais completas e legíveis desses textos. Embora os leiamos atualmente sem maiores problemas, autores como Aristóteles, Platão e Cícero ou outros, mais modernos, como o próprio Shakespeare, circulavam há cem, duzentos ou quinhentos anos em várias versões, muitas delas muito contraditórias entre si. Os filólogos, em muitos casos, inventavam ou reescreviam frases inteiras ou alteravam a ordem de palavras, períodos e parágrafos para obter textos que, só então, foram considerados legíveis. Hoje, esse é um trabalho praticamente invisível, mas que foi de grande importância entre o Renascimento e o século XIX, além de objeto de acaloradas discussões, como no caso de William Shakespeare.

A recente adição de Christopher Marlowe enquanto coautor das obras completas de William Shakespeare é uma das mais visíveis intervenções da filologia no ambiente editorial contemporâneo. Ela também demonstra a familiaridade que o campo possui com o uso de ferramentas computacionais. Desde a década de 1940, a filologia se constitui como pioneira para a introdução do computador nas humanidades. O computador possibilita aos filólogos realizar cruzamentos entre vastos conjuntos de dados, tarefa que seria impossível ou demandaria incontável tempo se fosse feita por métodos tradicionais. Paradoxalmente, é o estudo dos autores mais recuados no tempo, como Shakespeare, que mais se beneficia do uso do computador nos estudos literários.

A modificação proposta nas obras de Shakespeare adquire caráter oficial devido à sua publicação pela Universidade de Oxford, todavia não resolve todas as controvérsias. Existem autores que afirmam serem as evidências insuficientes, afinal um escritor pode compartilhar traços de estilo sem que isso implique em coautoria. Outros, ainda, sustentam que determinar quem são os coautores de Shakespeare é uma tarefa impossível, pois, no meio literário da época, a noção de autoria única que possuímos ainda não existia. Graças a essas divergências, a recente adição de Marlowe como colaborador de Shakespeare é apenas a ponta de lança para mais descobertas sobre a obra e a época do dramaturgo inglês.

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