Por Vitor Hugo Klein Junior – Pesquisador do Grupo Strategos – Esag/UDESC

Mercúrio coroando a Filosofia Mãe das Artes, pintura de Batoni Pompeo, século XVIII, ilustra a importância da filosofia como alicerce do conhecimento e ciência. O termo Artes refere-se às sete artes liberais que, na Idade Média, dividia-se em trivium e quadrivium, o primeiro um conjunto de disciplinas que estudam o texto literário, o segundo, composto de disciplinas destinadas ao ensino do método científico.
Há quatro anos, o físico Stephen Hawking defendeu a forte tese de que a filosofia estaria morta[1]. O argumento de Hawking ecoa, ironicamente, o do filósofo Nietzsche, que no século XIX, afirmara a morte de Deus. Argumentos contundentes são sem dúvida combustível de muito ressentimento no campo intelectual, e quando corretamente administrados, basta uma fagulha para que paixões se incendeiem. Hawking traz à tona, nesse caso, o conturbado relacionamento entre paixões distintas acerca do papel e alcance da ciência e da filosofia. Para todos os efeitos, Hawking não apresenta algo novo; o combate pela demarcação das fronteiras entre ciência e filosofia pode ser traçado desde o diálogo platônico de Cármides, escrito há mais de dois mil anos. Implícito na tese de Hawking encontra-se, contudo, o controverso entendimento de que a ciência seria detentora de uma espécie de monopólio da “realidade”, ou seja, de que a ciência teria posição superior à filosofia na busca de respostas sobre a natureza do homem e do universo. Paixões à parte, cabe à mente inquisitiva questionar: Seria possível a ciência prosperar sem a filosofia? Ou ainda, teria a filosofia perdido sua utilidade para a ciência como Hawking argumenta?
Desmistificando uma presumida morte da filosofia, o físico teórico Sebastian de Haro, da Universidade de Amsterdam, explica como três linhas de raciocínio[2], usualmente empregadas para defender a inutilidade da filosofia para ciência, são equivocadas. O primeiro argumento sugere que enquanto a ciência progrediu, a filosofia teria permanecido quase inerte ao longo dos séculos; logo, a filosofia teria menor papel nos avanços do conhecimento. O segundo argumento defende que não existem provas de que a filosofia tenha sido útil para a ciência. E, terceiro, é comum a tese de que, já que a filosofia e ciência tratam de objetos distintos, a filosofia não teria, portanto, o que oferecer à ciência.
O primeiro argumento é, de fato, bastante pertinente. Os avanços tecnológicos e de conhecimento propiciados pela sistematização da ciência são inegáveis. No entanto, seria prudente diferenciar os tipos de progressos feitos em cada um desses campos. O argumento perde força quando levamos em conta que a ciência é construída com base em valores e crenças, as quais são subjacentes ao que Thomas Kuhn, um filósofo da ciência, denominou de paradigma. Para pensar como valores e crenças atuam na composição do que é científico, podemos refletir sobre as condições institucionais pelas quais a ciência atual, em seus diversos ramos, é influenciada por imposições governamentais, pelos estímulos do mercado e da indústria, e os fluxos financeiros que suportam um modo específico de pensar e fazer ciência. O papel da filosofia, nesse caso, seria o de desvelar como valores e crenças influenciam na construção de um campo científico, apontando os limites que estes impõem aos avanços no conhecimento de determinada área. Indagações científicas começam, não raras vezes, com indagações filosóficas. E quando os valores e crenças de uma área são sujeitas a questionamentos, campos científicos inteiros podem ser potencialmente revolucionados. Um bom exemplo, nesse caso, é o autor Peter Singer, que ao levantar questões sobre bioética na década de 70, gerou estímulos para que estudos sobre a administração responsável da vida humana, animal e responsabilidade ambiental florescessem.
O segundo argumento, o qual defende que careceríamos de provas que a filosofia tenha sido alguma vez útil para a ciência, é fundamentalmente mais equivocado que o primeiro. Isso porque, é possível traçar as origens de explicações científicas em argumentos filosóficos, como a noção de átomo em Demócrito, certas conjecturas a respeito da seleção natural em Lucrécio e Diderot, a ideia sobre a existência de moléculas em Pierre Gassendi e Mikhail Lomonosov. Por mais especulativas, e eventualmente equivocadas, que estas ideias tenham sido, na época em que foram lançadas, elas certamente contribuíram para que cientistas conduzissem experimentos práticos e materializassem avanços no conhecimento.
A resposta ao terceiro argumento está implícita no que foi dito anteriormente. Apesar da filosofia e da ciência terem adquirido status de disciplinas distintas é impossível separar conhecimento técnico de outras formas de conhecimento humano. Caso isso fosse possível, significaria a morte da ciência, porque apesar de cientistas operacionalizarem a ciência, o valor de seu objeto nasce da vida prática. A filosofia, nesse caso, oferece o instrumental intelectual necessário para que os cientistas examinem e questionem as posições filosóficas implícitas nas pressuposições e objetivos de um paradigma científico e no modo como teorias estão conectadas com a vida prática.
Talvez a melhor resposta do por que a ciência precisa da filosofia venha de um resgate histórico dos livros de cabeceira de grandes cientistas. Um testemunho convincente, nesse caso, é a formação científica de Albert Einstein[3]. Em resposta aos receios de um recém-formado físico acerca do papel da filosofia na formação de cientistas, Einstein escreveu:
Eu estou em completo acordo com o senhor quanto à importância e ao valor educativo da metodologia, bem como da história e da filosofia da ciência. Muitas pessoas hoje — e mesmo cientistas profissionais — parecem-me com alguém capaz de enxergar milhares de árvores, mas nunca uma floresta. Um conhecimento das bases históricas e filosóficas fornece a essa pessoa uma espécie de independência diante dos preconceitos de sua geração, preconceitos que afetam muitos cientistas. Esta independência, propiciada pelo insight filosófico, é — na minha opinião — a marca de distinção entre um mero artesão ou especialista e um autêntico pesquisador em busca da verdade[4].
Texto excelente. Não imagino como a ciência como a conhecemos hoje poderia ter passado por tais avanços sem um indagamento filosófico primordial. De fato, esse diálogo entre ambos os seguimentos é fundamental para que o conhecimento humano encontre os novos paradigmas e possamos avançar.