Por Hélia Neves – Faculdade de Medicina de Lisboa – Portugal
O autismo, também conhecido como Transtorno do Espectro Autista (TEA), é um distúrbio neurológico que aparece nos primeiros anos de vida e afeta o desenvolvimento normal do cérebro. Um individuo com autismo apresenta dificuldades de comunicação e sociabilização (estabelecer relações interpessoais) e alterações de comportamento (interacções com o meio ambiente). Embora o autismo ainda não tenha cura, em um passado recente têm-se feito contribuições importantes para a compreensão desse distúrbio. Hoje sabemos que o autismo pode ter uma base genética associada a algumas causas ambientais, e que alterações do trato digestivo e dieta se relacionam com a evolução desse distúrbio (tema já abordado anteriormente no CDQ, clique aqui para acessar).
Os cientistas descobriram que… defeitos na proteína CPEB4 levam a alterações na expressão de 200 genes envolvidos na atividade neuronal, aumentando a susceptibilidade ao autismo.
A investigação realizada por duas equipas de investigadores, co-lideradas por José Lucas [Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC) e do Centro de Investigación Biomédica en Red sobre Enfermedades Neurodegenerativas (CIBERNED)] e por Raúl Méndez [Institute for Research in Biomedicine – Barcelona (IRB Barcelona)], mostrou que a proteína CPEB4 está alterada no cérebro de indivíduos com autismo.
A proteína CPEB4 pertence à família de proteínas, Cytoplasmic Polyadenylation Element Binding proteins 1–4 (CPEB1–4). Essas proteínas regulam a tradução de RNA mensageiros específicos através da modulação das suas caudas poli(A). A adição da cauda poliA nos RNAs designa-se poliadenilação e essa faz parte do processo de maturação do RNA mensageiro (a molécula que exporta do núcleo para o citoplasma, a informação do gene, para que essa seja traduzida em uma proteína). Nos eucariotas, a maioria das moléculas de RNA mensageiro termina com uma cauda poliadenilada que tem como função proteger o RNA da sua degradação no núcleo.
É possível compreendermos que modificações nas proteínas CPEB levem à desregulação do processo de poliadenilação de alguns RNA mensageiros (RNAm), e, consequentemente, à alteração dos níveis das proteínas traduzidas pelos mesmos (uma vez que cada RNAm é traduzido em uma proteína).
A proteína CPEB4, com outras funções já descritas (formação de vasos sanguíneos e regulação da função hepática), foi identificada nesse estudo como sendo capaz de se ligar aos transcritos dos genes (os RNAm) fortemente associados à predisposição para o TEA. Os cérebros de indivíduos com TEA mostraram alterações da proteína CPEB4, que se correlacionaram com a redução da expressão dos genes de risco do TEA. Esses resultados foram depois reproduzidos no modelo de murganho (camondongo) onde também foram observadas as características neuroanatómicas, eletrofisiológicas e comportamentais do tipo TEA. Segundo José Lucas, “ao estudar no modelo de murganho as alterações na expressão de proteínas após alteração da atividade de CPEB4, ficamos surpresos ao observar que as mudanças incluíram a maioria dos genes que predispõem os indivíduos com TEA”. Já segundo Raúl Méndez, “este trabalho é um exemplo de como a expressão de centenas de genes tem que estar perfeitamente coordenada para o correto funcionamento dos órgãos e das células que o compõem, neste caso os neurónios e o cérebro”.
Esse estudo, publicado na revista Nature, sugere, assim, que o defeito na proteína CPEB4 poderá ser o elo entre os fatores ambientais que alteram o desenvolvimento do cérebro e os genes que determinam a suscetibilidade ao autismo.
O futuro dirá a importância dessa descoberta e o papel da proteína CPEB4 como potencial “alvo terapêutico” no tratamento do autismo.