Extra! Extra! Uma nova organela é descoberta! Agora em Algas!

Giordano Wosgrau Calloni – Departamento de Biologia Celular, Embriologia e Genética – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Os leitores fiéis do CDQ talvez irão lembrar que há cerca de um ano atrás (15/06/2023) minha postagem foi a respeito de algo que com muita raridade acontece: a identificação de uma nova organela celular . A organela, chamada de corpos PXO havia sido descoberta em células do intestino de moscas da fruta e atuava como um sensor e reservatório de fosfato. O artigo científico havia sido publicado na prestigiosa Revista Nature.

Braarudosphaera bigelowii com seta preta indicando o nitroplasto. Tyler Coale, UCSC.

Pois pasmem, menos de um ano depois, mais precisamente em 11/04/2024, Cientistas Descobriram Que… as algas também contam com uma organela nunca identificada até então, ou pelo menos não identificada como uma organela! A descoberta foi feita na alga marinha Braarudosphaera bigelowii e a organela está sendo chamada de Nitroplasto sendo responsável pela fixação do nitrogênio nestes organismos.

Epa, mas percebam pela frase anterior que parece haver uma complicação nessa estória! Essa organela era algo que já se sabia que estava ali (diferente dos corpos PXO que nunca haviam sido observados até então), mas que não era considerado uma organela! E como pode isso? 

Para entender esse ponto precisamos tentar relembrar de algo que nossos queridos professores de biologia na escola ensinavam: a capacidade de fixação de nitrogênio é exclusiva das bactérias e archeas*, ou seja, apenas microrganismos procariontes conseguiam tirar o nitrogênio do ar e permitir que as células eucariontes pudessem utilizá-lo.

Assim, perceba o leitor que o paradigma vigente de que apenas seres procariontes eram capazes de fazer a fixação do nitrogênio era tão forte que foi ele próprio o responsável por impedir, ou retardar, que os Nitroplastos fossem caracterizados como uma organela. Vou explicar em mais detalhes para que o leitor possa compreender. 

As relações simbióticas que resultaram no surgimeno de novas organelas se originaram no ambiente aquático.

No ano de 2012, há mais de 10 anos atrás, o mesmo grupo de pesquisa havia demonstrado que a mesma alga marinha fazia uma interação muito próxima com uma cianobactéria chamada Candidatus Atelocyanobacterium thalassa, também conhecida como UCYN-A (preste muito atenção nesta sigla, pois a usaremos muito ao longo do texto). Esta bactéria parecia viver dentro ou sobre as algas. A conclusão lógica que os cientistas chegaram à época era de que a bactéria convertia o gás nitrogênio em compostos que a alga usava para crescer, tais como a amônia (isto é, uma típica fixação do nitrogênio). Em troca, a bactéria ganharia da alga uma fonte de energia baseada em carbono. Ou seja, uma relação simbiótica que se estima ter iniciado há 100 milhões de anos atrás entre os ancestrais da alga e da bactéria. 

Mas e se a bactéria na verdade estivesse se comportando mais como uma organela dentro da célula da alga? Não seria fantástico estar observando um fenômeno como esse? Seria como se estivéssemos presenciando aquilo que aconteceu com nossas células e as bactérias que originaram as nossas mitocôndrias, ou o que aconteceu entre as células eucariontes (já com mitocôndrias) e as cianobactérias que se tornaram os cloroplastos dos vegetais (ver referências ao final do texto para saber mais). Pois é exatamente isso que os autores sugerem que está acontecendo com a UCYN-A. Estaríamos presenciando uma espécie de “conversão” de bactéria em organela! Mas quais as evidências para esta hipótese ao ponto de ela merecer ser considerada e inclusive publicada e virar capa na prestigiosa revista Science? 

Cloroplastos (em verde) em célula vegetal. Esta organela possui origem semelhante à do nitroplasto. Fonte: Canal do YouTube TheMicrobiology09

Utilizando técnicas sofisticadas como tomografia de raios X e de análises de proteínas (proteômica), o grupo mostrou que a UCYN-A está integrada na arquitetura da célula de B. bigelowii inclusive se dividindo em uma sequência síncrona com as demais organelas da célula. Além disso, o que talvez seja ainda mais extraordinário é que enquanto algumas das proteínas da bactéria são codificadas pelo seu próprio genoma, outras proteínas são codificadas pelo genoma da alga, que após produzidas são direcionadas para a bactéria. Isto é formidável, pois é justamente o que ocorre com as mitocôndrias e cloroplastos, em que a maior parte de suas proteínas é codificada pelo genoma do núcleo da célula. Essas proteínas são então produzidas pelos ribossomos livres do citosol e então precisam ser importadas pelas organelas (assunto já apresentado aqui no CDQ, ver referências no final do texto). Importante: muitas das proteínas mais abundantes produzidas pela alga e importadas por UCYN-A são conhecidas por auxiliar na fixação do nitrogênio. Assim, segundo os autores, a UCYN-A parece ter características moleculares e celulares de uma organela fixadora de Nitrogênio em estado inicial. Essas características são critérios comumente usados ​​para distinguir organelas de endossimbiontes e revelam que a UCYN-A já não é mais uma célula bacteriana, mas uma organela fixadora de nitrogênio! Não é fantástico? 

Quando ouvimos falar de Evolução muitas vezes temos a impressão de que é como se estivéssemos falando de algo anacrônico, de um passado arcaico, do qual apenas vemos (ou somos) o produto e não algo atual, pujante, atuante e acontecendo diante de nossos olhos! Talvez esta seja a mais bela mensagem que esta nova organela venha a nos trazer: Evolução do ponto de vista biológico é sinônimo de mudança (não de progresso) e ela nunca deixa de acontecer, mesmo quando não a percebemos. Este estudo configura um dos mágicos momentos em que nos é dada a possibilidade de apreciar um processo evolutivo acontecendo. 

*Archeas: seres procariontes muito parecidos com bactérias ao microscópio, mas com profundas diferenças moleculares que as tornam muito parecidas com seres eucariontes. Muitas delas vivem em ambientes inóspitos como desertos, geleiras, salares ou em fendas oceânicas profundas. 

Para saber mais:

Diagrama

Descrição gerada automaticamente
Capa da Revista Science de 12 de abril de 2024 representando a divisão celular da alga B. bigelowii (em verde) e a agora nova organela batizada Nitroplasto (em marrom) dividindo-se sequencialmente com a alga. 

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