Terapias de substituição mitocondrial: bebês de três Pais?

Por: Giordano W. Calloni – Dpto. de Biologia Celular, Embriologia e Genética – UFSC

O leitor achou que o título deste texto é provocativo ou no mínimo estranho? Que ótimo, a intenção era justamente esta. Pois saiba, caro leitor, que realmente já temos bebês nascendo com o material genético não apenas do papai e da mamãe como é de praxe, mas com a contribuição de um terceiro “genitor”. Para entendermos o que parece mais uma história saída dos livros e filmes de ficção científica, precisamos voltar a falar delas: as mitocôndrias.

Essas organelas possuem uma história fascinante que já foi apresentada aqui em postagens anteriores do nosso Blog (para mais detalhes ver: Bactérias ancestrais poderiam nos proteger do AVC). Resumidamente, bactérias aeróbias ancestrais estabeleceram uma simbiose com as células eucariontes. Com o passar do tempo, sofreram mudanças e transformaram-se nas atuais mitocôndrias. Organelas presentes no citoplasma de todas as células eucarióticas (com rara exceções)  responsáveis pela respiração celular e produção de energia sob a forma de ATP.

As mitocôndrias, mantêm em seu interior resquícios deste seu passado evolutivo, elas possuem um DNA próprio, chamado de DNA mitocondrial (DNAmt). Outro fato fascinante é que as mitocôndrias são herdadas da linhagem materna. O leitor já pode imaginar que existe, portanto, uma “Eva mitocondrial”. Justamente analisando o DNAmt de fósseis humanos é que hoje em dia se sabe as rotas que o Homo sapiens percorreu desde sua saída do continente africano.

Pois bem, existem certas doenças, chamadas de doenças mitocondriais que podem ser herdadas maternalmente. Uma delas já foi discutida em minha última postagem e criou recentemente um imbróglio jurídico muito importante. Ela acometeu um bebê chamado Charlie Gard (para detalhes ver: Entendendo o mal de Charlie-Gard).

O bebê que irei falar no presente texto teria nascido com uma outra doença mitocondrial, chamada síndrome de Leigh(1), caso a ciência não houvesse feito uma crucial intervenção: a troca das mitocôndrias alteradas da mãe pelas mitocôndrias saudáveis de uma doadora. Essa doença degenerativa afeta principalmente os músculos, coração e sistema nervoso levando à morte precoce de seus portadores. O responsável pela intervenção foi o Dr. Jonh Zhang (diretor médico no New Hope Fertility Center, em Nova York, EUA) e sua equipe.

O esquema ao lado mostra exatamente o que foi feito. Podemos dividir basicamente a intervenção em três passos: 1) da mãe foi obtido um óvulo com seu material genético em perfeito estado, mas com um citoplasma repleto de mitocôndrias defeituosas (seriam essas as mitocôndrias que seriam doadas ao bebê caso não fosse realizada a intervenção). Ao mesmo tempo, uma mulher (“terceira genitora”) doou um óvulo repleto de mitocôndrias saldáveis. 2) no segundo passo, o núcleo do óvulo da mãe foi removido e preservado. Já o núcleo do óvulo doador (terceira genitora) foi removido, e destruído. 3) o material genético intacto da mãe foi transferido para o citoplasma do óvulo contendo as mitocôndrias saudáveis da terceira genitora. Finalmente, o óvulo foi fecundado por fertilização in vitro com o espermatozoide do pai e, então, implantado na mãe (não mostrado no esquema).

O bebê saudável nasceu em setembro de 2016 e, obviamente, ganhou repercussão internacional pela novidade da técnica, uma vez que outros bebês com material genético de três genitores já haviam sido concebidos no passado, mas nenhum deles pela técnica aqui descrita. Esse bebê tornou-se, portanto, um marco nas terapias de substituição mitocondrial, como são chamadas essas técnicas. Importante salientar que 99,9% do genoma do bebê é dos pais, e apenas 0,1% da “segunda mãe” (ou terceira genitora) uma vez que o DNAmt contribui apenas com uma pequena (mas muito importante) parcela do material genético de nossas células. Justamente por isto alguns cientistas dizem que os bebês gerados através dessa técnica deveriam ser chamados de “Bebês de três pessoas e não bebês de três pais”, afinal a maior parte das características genéticas são herdadas efetivamente dos pais.

Curiosamente, todo este procedimento não foi realizado nos EUA (no hospital em que o Dr. Zhang trabalha), mas sim no México. Os pais do bebê, um casal de jordanianos que vive nos EUA, teve que atravessar a fronteira para realizar o procedimento, uma vez que as leis americanas não permitem este tipo de técnica até o momento. Um dos problemas éticos está relacionado justamente à destruição do óvulo completamente saudável da “segunda mãe”.  Há os que argumentem que este seria um dos primeiros passos para criar os chamados “designer babies”, ou seja, bebês projetados conforme os “desejos” de seus pais.

No México, não há regulamentação específica para estes casos e, portanto, não há impedimento legal. O primeiro lugar no mundo (e a princípio único) onde esse procedimento esta regulamentado é o Reino Unido e isto ocorreu muito recentemente, apenas no ano de 2015, após longas e acaloradas discussões. No final, o bom senso pareceu predominar: afinal que pai e mãe não deseja o melhor para seus filhos? Seria ético não intervir sabendo que um bebê com mitocôndrias defeituosas poderá estar morto em apenas 48 horas após seu nascimento, ou, talvez, de maneira ainda mais dramática, debilitar-se progressivamente como foi o caso de Charlie Gard?

Como podemos perceber estas antigas bactérias que se transformaram nas nossas mitocôndrias são catalizadoras de grandes imbróglios éticos e jurídicos, e, talvez, justamente por isto, sejam ainda mais fascinantes.

Para saber mais:

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