Do Laboratório ao Berço: a Corrida Pela Primeira Terapia CRISPR Personalizada

Por Heiliane de Brito Fontana

A edição genética baseada na tecnologia CRISPR vem protagonizando uma revolução silenciosa na medicina. Desde que foi apresentada ao mundo em 2012, essa ferramenta de “tesoura genética” tem permitido intervenções cada vez mais precisas no DNA e já foi abordada aqui no CDQ em publicações prévias (como em 2015, no artigo “Mais um passo em frente na cura de doenças por terapia gênica: o sistema CRISPR”). Em 2020, as cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna receberam o Prêmio Nobel de Química por desenvolverem o método de edição CRISPR-Cas9 — uma consagração do potencial transformador da técnica.

Cientistas descobriram que o CRISPR poderia ser usado não apenas para estudar genes, mas para corrigi-los — letra por letra — abrindo caminho para o tratamento de doenças antes consideradas intratáveis. Desde então, uma nova geração de terapias genéticas vem sendo testada, especialmente para doenças com alta prevalência, como anemia falciforme e β-talassemia, onde uma única edição pode beneficiar muitos pacientes.

Mas um novo capítulo foi escrito. Em maio de 2025, um artigo publicado no New England Journal of Medicine revelou um feito inédito: a primeira aplicação de uma terapia CRISPR personalizada diretamente no corpo de um bebê com uma mutação genética única.

O pequeno KJ Muldoon nasceu com uma deficiência grave na enzima carbamoil-fosfato sintetase 1 (CPS1), essencial para o metabolismo de proteínas. Sem essa enzima, a amônia — um subproduto tóxico da quebra de proteínas — se acumula no sangue e pode causar danos cerebrais irreversíveis. A solução convencional para casos como o de KJ seria um transplante de fígado, mas ele ainda era pequeno demais para o procedimento e os riscos de danos cerebrais são eminentes nessa condição.

Em uma verdadeira corrida do laboratório ao berço, uma força-tarefa formada por médicos, cientistas e agências regulatórias desenvolveu, em apenas seis meses, uma terapia de edição de base — uma forma de CRISPR capaz de trocar letras específicas do DNA — feita sob medida para KJ. Antes de chegar ao bebê, a terapia passou por uma maratona científica: foram criadas linhagens celulares específicas, desenvolvidos modelos animais, testes de segurança em primatas e avaliados possíveis efeitos colaterais genéticos. Batizada de k-abe, a terapia foi aplicada diretamente no fígado por meio de nanopartículas lipídicas, com o objetivo de corrigir a mutação rara que ele havia herdado. Tudo isso aconteceu em tempo recorde, para tentar salvar a vida de um recém-nascido com uma doença ultrarrara e letal.

KJ recebeu três doses da terapia. Após a primeira, ele já pôde consumir mais proteínas com segurança e reduziu a medicação que controla os níveis de amônia no sangue. Após a segunda dose, foi possível cortar pela metade essa medicação. Agora, com a terceira dose aplicada, os médicos observam com cautela, mas com otimismo, os sinais de melhora.

Apesar dos resultados promissores, os próprios autores do estudo ressaltam que ainda é cedo para falar em cura. A segurança a longo prazo da terapia precisa ser avaliada e seu custo e complexidade tornam sua aplicação ampla um grande desafio. Afinal, cada terapia personalizada exige um desenvolvimento único, com tempo e recursos consideráveis.

Ainda assim, esse caso é um marco: mostra que é possível desenvolver tratamentos CRISPR de forma rápida e direcionada para doenças ultrarraras. Como defende um dos especialistas, “esse é o futuro das terapias gênicas e celulares”. Quem sabe? No futuro, talvez possamos falar em curas sob medida para doenças hoje que não são tratáveis.

Para saber mais:

Musunuru, K. et al. N. Engl. J. Med. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2504747 (2025).

Innovative Genomics Institute. CRISPR Clinical Trials: A 2024 Update. Published January 11, 2024. Accessed May 25, 2025.

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