Antibióticos, antigos aliados agora inimigos?

 Por Hélia Neves                                                                                                                                       Prof. da Faculdade Medicina de Lisboa – Portugal

Para ouvir o áudio do texto com a autora, clique aqui.

Um estudo publicado recentemente (Agosto 2014) na revista Cell sugere que a exposição regular a antibióticos em doses baixas, durante os primeiros anos de vida, modifica a composição das bactérias do intestino, ou microbiota, alterando de forma permanente o metabolismo do corpo e gerando predisposição à obesidade.

No corpo humano existem múltiplos agregados de bactérias (microbiota) que revestem superfícies diferentes do nosso organismo, como a pele no exterior ou o tubo digestivo no interior. Em particular, a microbiota do intestino (comumente conhecida por flora intestinal) contém dezenas de bilhões de microrganismos, em número 10 vezes superior às células do nosso corpo. Nesta, estão incluídas pelo menos 1000 espécies diferentes de bactérias conhecidas, com mais de 3 milhões de genes (o microbioma, que corresponde a 150 vezes mais genes do que os genes humanos). Num individuo adulto, a microbiota pode pesar até 2 kg, e um terço desta é semelhante na maioria das pessoas. No entanto, os restantes dois terços são específicos para cada um de nós o que faz com que a nossa microbiota intestinal seja única e individual como uma “impressão digital”.

E porque é que a microbiota do tubo digestivo é tão importante? Porque embora cada um de nós tenha uma microbiota única, ela desempenha funções fisiológicas importantes mantendo a integridade da mucosa intestinal. A microbiota ajuda o organismo a digerir certos alimentos que o estômago e o intestino delgado não são capazes de digerir e contribui com a produção de algumas vitaminas (B e K). A microbiota também desempenha um papel importante no sistema imune, ajudando-nos a combater agressões de outros microorganismos e criando um efeito de barreira. Dado o papel fundamental da microbiota na funcionalidade normal do tubo digestivo, hoje em dia alguns investigadores consideram-na como um “órgão”. No entanto, este é um órgão “adquirido”, uma vez que surge com a colonização do intestino pelas bactérias, logo após o nascimento, e evolui à medida que crescemos.

Um novo estudo realizado pela equipa do Dr. Blaser da NYU Langone Medical Center (em Nova York) revelou o efeito da modificação da microbiota de murganhos (camundongos), pelo uso regular de penicilina (antibiótico) em doses baixas, na fase do desenvolvimento em que a microbiota se estabelece no individuo. Em comparação com animais não tratados, os camundongos tratados com penicilina apresentaram um crescimento acelerado, um conteúdo mineral ósseo alterado, e um aumento da gordura e do peso total do corpo, sendo esse efeito maior quando as mães recebem o tratamento antes do parto e durante a amamentação. Também, estes ratinhos apresentaram micróbios diferentes no intestino, com níveis significativamente mais baixos de Lactobacillus, Candidatus e Allobaculum (as duas últimas manifestam-se mais no início da vida em condições normais), sugerindo que este conjunto de micróbios podem contribuir para a regulação do peso do indivíduo ao longo da sua vida. Embora essas comunidades de bactérias tenham recuperado os seus níveis normais após a remoção do antibiótico, os ratinhos ao envelhecerem apresentaram um ganho de mais 10% do seu peso (o que equivale uma pessoa de 70 kg ganhar mais 7 Kg) e um sistema imunitário debilitado.*

Os investigadores também observaram que a combinação do tratamento de antibiótico com uma dieta rica em gordura exacerba todos os efeitos indutores de obesidade, especialmente em fêmeas (que acumulam o dobro da gordura corporal). Estes resultados mostraram que as alterações do microbioma, induzidas pelo uso de antibiótico, potenciam o efeito desta dieta.

Os micróbios do intestino são parte activa do nosso desenvolvimento. Assim, à medida que nós crescemos, eles ajudam a definir o nosso metabolismo e a treinar nosso sistema imunológico. E tal como a escolaridade e a educação podem ter efeitos duradouros sobre nossas vidas, este trabalho mostra que a educação microbiana, numa janela de tempo crítico no início da vida, pode afectar permanentemente a nossa saúde.

Os autores deste estudo advertem no entanto, que estes resultados foram obtidos num modelo animal, com características diferentes do homem. Por exemplo, as nossas dietas alimentares e os nossos estilos de vida são muito mais variados do que as dos ratinhos de laboratório, e muitas das nossas escolhas, podem agravar ou anular os efeitos descritos neste trabalho. A equipa também está a desenvolver novas experiências que reproduzem melhor as situações em que as crianças são normalmente expostas a antibióticos (como por exemplo, a administração de antibiótico no tratamento duma infecção do ouvido). Para tal, o antibiótico está a ser administrado em doses altas e em curtos espaços de tempo.

Por fim, se estes resultados se aplicarem aos seres humanos, resta alertar que devemos repensar e ser mais criteriosos no uso de antibióticos em lactantes e crianças, uma vez que estes também poderão ter efeitos negativos. Na verdade, o uso excessivo e por vezes desnecessário de antibióticos tem permitido o surgimento de superbactérias resistentes a antibióticos, ironicamente acelerando uma nova realidade onde os antibióticos deixam de funcionar…

Para acessar  o artigo original, clique aqui

* Doses baixas de antibióticos têm sido usados para promover o crescimento do gado e na avicultura há várias décadas, embora o mecanismo subjacente ao efeito de engorda pelos antibióticos não seja claro. Num trabalho anterior (Nature 2012), esta equipa mostrou que ratinhos com uma dieta normal, expostos ao longo da vida a doses baixas de antibióticos, semelhantes às administradas no gado comercial, apresentavam alterações nos níveis hormonais e na actividade de genes envolvidos no metabolismo dos carbohidratos e lipídios.

Neste trabalho, os autores provaram que os efeitos da obesidade foram resultado da modificação do microbioma e não da acção directa da penicilina. Para tal, os investigadores transferiram populações bacterianas provenientes de ratinhos expostos à penicilina para ratinhos livres de germes com três semanas de idade (o que corresponde a infância, logo após o desmame). Os ratinhos inoculados com bactérias dos doadores tratados com antibióticos ficaram de facto mais gordos do que aqueles livres de germes inoculados com bactérias provenientes de doadores não tratados.

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