Por Hélia Neves Prof. da Faculdade de Medicina de Lisboa – Portugal Para ouvir o áudio do texto com a autora, clique aqui.
Retomamos, esta semana, as visitas por terras Portuguesas… De regresso ao Alentejo, encontramos a cidade de Elvas, reconhecida como Património Mundial da UNESCO pelas suas fantásticas fortificações em formato de estrela, datadas dos séculos XVII a XIX. Entre estas, encontra-se o Forte de Nossa Senhora da Graça, com a sua estrutura de planta quadrangular com vértices rematados por baluartes pentagonais. Essa fortaleza é um desafio arquitectónico com muralhas desenhadas por repetições da mesma forma geométrica… assemelhando-se a um objecto fractal…
O que é um fractal?
Um fractal é um objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhante ao objecto original. Embora possam ser criados pelo homem, os objectos fractais manifestam-se abundantemente na natureza. Um dos mais extraordinários exemplos é o cristal de gelo, com formas variadas, algumas semelhantes às formas do Forte de Nossa Senhora da Graça.

A. Forte de Nossa senhora da Graça, Elvas, Portugal. B. Imagens de topo – modelo fractal dum cristal de gelo gerado pelo padrão repetido dum triângulo precedente (Koch snowflake) (imagem adaptada de http://goo.gl/rsZ1M0). Fotografia com fundo preto são imagens reais e ampliadas de cristais de gelo (adaptada de htp://goo.gi/rlYsDK)
A forma do cristal de gelo não é, no entanto, perceptível ao olho humano por ocorrer numa escala extremamente pequena. Em oposição, há outros objectos fractais que, pela sua enorme dimensão, também passam despercebidos à nossa observação. Um dos mais belos e exuberantes fractais formados no nosso planeta é o leito dos rios, esculpido na natureza pelo repetido processo de erosão causado pela chuva que é transportada da terra para os oceanos. Ao cair, a chuva flui pela paisagem formando um pequeno canal. Com a repetição desse processo, o canal torna-se mais profundo e ramifica-se em novos caminhos na sua extremidade. Assim, também o leito dos rios desenha figuras geométricas de padrões repetitivos que podem ser definidas por modelos fractais.
Curiosamente, no interior do nosso corpo pulsa um sistema líquido, o sistema circulatório, que é semelhante às redes fluviais fractais do nosso planeta. E um dos órgãos fortemente associado ao sistema circulatório, o pulmão, também segue um modelo fractal semelhante, quer na forma das suas vias respiratórias, quer na dos vasos sanguíneos associados. O pulmão tem como função principal oxigenar o sangue e liberar o dióxido de carbono do nosso corpo. Essas trocas gasosas ocorrem pelo contacto estreito entre os alvéolos respiratórios (que transportam o oxigénio do exterior para o sangue) e a rede de vasos capilares (que recebe o oxigénio do alvéolo e libera o dióxido de carbono trazido das células do corpo). Para realizar essa actividade, o pulmão desenvolve uma intrincada arquitectura onde uma profusa série de bifurcações das vias respiratórias forma uma árvore com 17 milhões de ramos que terminam em 480 milhões de alvéolos, com uma área total de 130 m². Em paralelo, forma-se uma série de bifurcações dos vasos arteriais que acompanham as ramificações das vias respiratórias, gerando 250.000 pequenas artérias e 280 milhões de capilares alveolares, espalhando 200 ml de sangue pela superfície alveolar.
Esta geometria estereotipada das árvores das vias respiratórias e vasculares humanas levou o investigador Lefevre a propor a arquitectura pulmonar como uma estrutura fractal. Ele demonstrou que tais árvores bifurcam seguindo o princípio de desenho adequado para “gastar o mínimo de materiais e energia na sua construção, reparação e funcionalidade, mantendo estas propriedades em diferentes condições”. Isto é, a geometria dessas árvores é optimizada às suas funções, minimizando o volume dentro dos segmentos condutores, bem como a resistência aos fluídos ou ao movimento do ar. Assim, num feito notável de engenharia, todos esses requisitos são conseguidos através deste sistema fractal de árvores com ramificações entrelaçadas.

A. Lago Nasser no Egito, visto da Estação Espacial Internacional em Janeiro de 2010 (http://gl/sgsp18). B. Modelo em látex do pulmão humano. Vias respiratórias estão representadas a branco, a árvore vascular arterial, a vermelho e a árvore venosa, a azul. As três árvores são estruturas entrelaçadas complexas que surgem a partir de trocos individuais. As vias respiratórias e a árvore arterial formam-se em espelho e em unidades que se repetem ao dividirem-se desde os ramos de maior dimensão até os terminais C. Modelo fractal do pulmão em que uma estrutura tipo árvore foi construída através de regras simples de repetições de ramificações nas extremidades de ramificações. (B e C são imagens retiradas do artigo de Glenny. R, 2010)
Podemos, então, perguntar como é que essa geometria é conseguida durante o desenvolvimento do pulmão. Para tal, a matemática fractal foi combinada com os conceitos de morfogénese (isto é, de como gerar a forma). Tudo começou nos anos 90 do século passado, quando o investigador Turing demonstrou através de equações matemáticas que com apenas dois produtos químicos, a que ele chamou de “morfogene”, seria possível produzir padrões espaciais durante o desenvolvimento. Turing chamou esse tipo de equação de “equação de reacção-difusão”, e demonstrou que variando as interacções dos morfogenes e a sua velocidade de difusão, poderiam ser criados os diferentes padrões espaciais. Mais recentemente, os investigadores Metzger e Krasnow, ao combinarem a sinalização molecular de reacção-difusão com os conceitos fractais, demostraram que com um número limitado de proteínas é possível gerar todo o processo de sucessivas ramificações durante o desenvolvimento do pulmão.
A geometria das árvores pulmonares (vias respiratórias e vasculares), mais do que uma curiosidade arquitectónica, é hoje considerada um produto de sucesso da selecção evolutiva. Na realidade, os sistemas vasculares e de distribuição de ar são modelos fractais utilizados por múltiplas espécies, desde as plantas aos insectos e animais. Sendo um dos grandes objectivos da medicina regenerativa “aprender” a construir artificialmente os órgãos do nosso corpo, urgem novos estudos multidisciplinares, para melhor compreendermos como a universalidade das formas fractais no mundo vivo pode conferir a função óptima aos órgãos e sistemas biológicos.
Texto elaborado a partir do artigo de revisão “Emergence of matched airway and vascular trees from fractal rules” Robb W. Glenny. J Appl Physiol, 2011.
Convido-vos também a “sobrevoarem” o Forte de Nossa Senhora da Graça, Elvas, Portugal neste link.