Uma nova estratégia para driblar o sistema imune no transplante de órgãos

Por Marco Augusto Stimamiglio – Instituto Carlos Chagas – Fiocruz/PR

Quando o assunto é transplante de órgãos, um dos grandes problemas a ser enfrentado é a possível rejeição imunológica desencadeada pelo paciente receptor e a consequente perda do enxerto (órgão ou tecido doado). O enfrentamento deste problema normalmente requer o uso contínuo de muitos medicamentos imunossupressores (que reprimem o sistema imune do paciente receptor e evitam a rejeição do órgão ou tecido doado). Entretanto, esta estratégia de imunossupressão após o transplante pode tornar os pacientes mais vulneráveis a outras doenças, além de causar muitas complicações devido a seus efeitos colaterais. Assim, a rejeição do enxerto e os efeitos indesejados da imunossupressão ao longo da vida continuam a dificultar a ampla aplicação clínica dos transplantes.

Uma estratégia para driblar este problema e permitir a aceitação do enxerto pelo paciente receptor, sem o uso de medicamentos imunossupressores, seria manipular os próprios mecanismos de regulação imunológica do nosso corpo. Por exemplo, ativando células T reguladoras (Treg), que agem como anti-inflamatórios naturais, secretando proteínas que inibem a resposta imune e induzem a morte de células inflamatórias. Isto já acontece em doenças como o câncer, que é capaz de “esconder-se” do sistema imune quando recruta e “treina” as Treg para que reconheçam as células tumorais como próprias (uma vez que células tumorais se tornam aberrantes e são normalmente reconhecidas pelo sistema imune como invasoras). Portanto, uma vez que o tumor induz as Treg a reconhecer as células cancerígenas como seguras, o câncer pode crescer e se espalhar pelo corpo. Conhecendo este mecanismo, cientistas da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, demonstraram uma forma de “treinar” o sistema imune de ratos para tolerar o transplante de uma perna inteira. O estudo, publicado em março de 2020, na revista científica Science Advances, demonstra o desenvolvimento de um sistema de administração de medicamentos baseado em micropartículas e projetado para liberar, de forma prolongada, uma proteína que recruta as Treg (chamada CCL22) e, desta forma, capaz de treinar o sistema imune dos ratos transplantados para que reconheça o enxerto do doador como um tecido próprio.

Em sua estratégia experimental, os cientistas transplantaram membros posteriores de ratos marrons para os corpos de ratos brancos. Então, os ratos foram tratados com três doses diferentes de micropartículas biodegradáveis ​​contendo a proteína CCL22, a proteína CCL22 na forma solúvel (não associada às micropartículas) ou as micropartículas vazias, cada uma injetada sob a pele do membro doador. Nos primeiros 50 dias, todos os membros transplantados foram rejeitados, exceto nos ratos que receberam a dose média ou alta de micropartículas carregadas com CCL22. Em seis dos oito ratos que receberam a dose média dessas micropartículas, os membros doadores sobreviveram por muito tempo (mais do que os 200 dias do experimento). Ao analisar mais profundamente os membros transplantados, os cientistas descobriram que havia uma porcentagem maior de Treg entre todas as células T nos enxertos que sobreviveram em comparação com as que foram rejeitados. Além disso, o sistema imunológico dos animais receptores não apenas aceitou os membros transplantados, mas também aceitou um enxerto de pele de outro rato doador marron (mesma estirpe que os doadores de membro). A aceitação do enxerto de pele ocorreu na ausência de nova imunossupressão. Porém, os ratos receptores rejeitaram completamente um enxerto de pele de uma terceira estirpe de ratos, indicando que o sistema imune dos ratos receptores passou a reconhecer como próprio o conjunto de antígenos dos ratos marrons apenas.

Apesar destes resultados surpreendentes, sabe-se que algumas estratégias que induzem a tolerância imunológica de tecidos estranhos provenientes de doadores vivos falham quando o tecido vem de um doador com morte cerebral, como é o caso de transplantes de membros, por exemplo. Não se sabe bem por que há uma diferença, mas essa é uma pergunta em aberto que pode influenciar a eficácia dessa estratégia no futuro.

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