Será que estamos tratando o sintoma, mas não a causa do diabetes tipo 2?

Por Alex Rafacho, Dpto de Fisiologia – UFSC

(versão estendida em vídeo, clique aqui)

”No tempo de Copérnico e Galileu, a ciência virou o mundo de cabeça para baixo. A Terra não estava mais no centro do universo, enquanto novas descobertas de anatomia, fisiologia, química e física lembravam as pessoas de que, no final das contas, os antigos não sabiam tudo. Ainda havia muita coisa a ser descoberta”.1 Como dizia um dos grandes filósofos da ciência, o inglês Francis Bacon (1561-1626), um dos precursores do método científico, ‘conhecimento é poder’. A ciência, por meio do método científico, nos permite compreender os fenômenos da natureza e, com isso, melhorar nosso conforto, nossa saúde e até nossa felicidade. A ciência deve ser praticada sem o viés de quem a realiza, deve ser imparcial e estruturada num formato que possa ser confrontada e até mesmo colocada em xeque-mate, ou seja, que as conclusões refutadas deixem de ter seu significado, como reforçava o grande filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994).2 Contudo, nem precisamos varrer do mapa os conhecimentos providos pelos nossos antepassados, e nem descartar por absoluto a validade das conclusões que foram refutadas com base nas melhores ferramentas de que dispomos. Com este grande recado, Thomas Kuhn (1922-1996) nos deu a oportunidade de reajustarmos nossos conhecimentos sem que necessariamente deixemos tudo para trás.3 Munidos desses preceitos daremos início à nossa reflexão.

Em seu livro publicado em 2018 ‘O código do diabetes’, o médico canadense, especializado em doenças renais, Dr. Jason Fung,4 nos alerta para dois conceitos consolidados entre as associações médicas de diabetes e que ele assegura serem duas falácias. Uma delas é de que o curso da doença, no caso o diabetes mellitus tipo 2 (DM2), é progressivo.5 O DM2 acomete aproximadamente 9 de cada 10 diabéticos, sendo os outros 10% diagnosticados com o tipo 1 (DM1). O DM2 acomete predominantemente adultos e idosos e tem no excesso de peso um de seus grandes fatores de risco. Outra falácia, segundo o Dr. Fung, é de que o tratamento da glicemia com insulina em pacientes com DM2 é algo bom e não ruim.5

O principal argumento apresentado no livro é que tanto o diagnóstico
quanto o tratamento do DM2 está focado nos sintomas, no caso a elevação das concentrações de glicose no sangue (hiperglicemia), e não na causa, que segundo toda a narrativa apresentada pelo Dr. Fung, reside na manutenção persistente de níveis elevados de um dado hormônio no plasma ao longo dos anos, a insulina, ao que denominamos hiperinsulinemia. Ele utiliza uma analogia no mínimo razoável; imagine que você tenha uma febre decorrente de uma infecção de garganta. Você faz uso de analgésico e antitérmico (ex., paracetamol) para tratar o sintoma, no caso a febre, e toma antibiótico para erradicar a causa, no caso a infecção bacteriana. Se focarmos no tratamento do sintoma neste exemplo, não erradicaremos a causa, que depende da eliminação das bactérias.

Assim, seguindo essa lógica, o Dr. Fung alega que focamos na hiperglicemia, no caso um sintoma do DM2, para elaborar o plano terapêutico que inclui (em ordem crescente): restrição calórica e aumento do engajamento em atividades ou exercícios físicos associado ao uso de medicações orais que vão de uma a inúmeras medicações até que se considere, inclusive, o controle da glicose sanguínea por meio da aplicação de insulina. Mas, ao optarmos por essa proposta, não estaríamos atacando a causa do diabetes que reside na hiperinsulinemia persistente.

A insulina é um hormônio imprescindível ao nosso metabolismo e é responsável pelo direcionamento dos nutrientes que ingerimos, seja para o uso na produção de energia ou para o armazenamento visando uso posterior (ex., durante um jejum ou atividade física). O principal estímulo para a liberação da insulina é a glicose sanguínea. A glicose está presente em inúmeras fontes alimentares, mas ressalta-se sua abundância em vegetais contendo amido (ex., batatas), pães e massas e em alimentos e bebidas com adição de açúcares. A questão é que hoje estamos cercados por e incentivados a consumir alimentos ricos em açúcares.

Contudo, os cientistas descobriram que a ingestão regular de carboidratos de fácil digestão ou absorção resulta em elevação das concentrações de insulina e, voilá, a hiperinsulinemia se desenvolve! A hiperinsulinemia, neste contexto, contribui para o ganho de peso na forma de gordura e, no longo prazo, ao acúmulo de gordura no abdômen e até em órgãos como o fígado. Uma vez alcançada essa condição, a resistência à insulina se desenvolve e nos acercamos do desenvolvimento do diabetes. Aqueles que acumularem gordura no pâncreas serão candidatos a desenvolverem o DM2. Por isso, o excesso de peso (gordura) é fator de risco ao DM2. Assim, o Dr. Fung ressalta que, ao tratarmos o DM2 com insulina, estaríamos reforçando esse ciclo de hiperinsulinemia e maior acúmulo de gordura. Ao invés de atacarmos a causa (hiperinsulinemia) estaríamos reforçando-a.

Segundo o Dr. Fung, o DM2 pode ser revertido, portanto não seria uma sentença de doença progressiva a todos os pacientes. O livro narra que a melhor forma para se evitar ou controlar a hiperglicemia e os males do DM2 não se restringe ao uso de medicações, insulina ou até mesmo em estímulo ao exercício físico e na redução do consumo de calorias apenas, mas na redução considerável do consumo de alimentos ricos em carboidratos e aqui valeria dizer os alimentos ultraprocessados/industrializados. O Dr. Fung vai além e nos introduz uma recomendação contundente para a interrupção do ciclo vicioso causado pela hiperinsulinemia, o jejum intermitente. Claro, tudo devidamente acompanhado de supervisão médica.

Assim, recordamos o embate entre o geocentrismo x heliocentrismo onde o último é indiscutivelmente acertado. Cabe ponderarmos se a visão glicocêntrica, onde o tratamento do DM2 se baseia na glicemia (sintoma), cederá à visão insulinocêntrica advogada pelo Dr. Fung, onde o foco tem que estar no tratamento da hiperinsulinemia (causa). Há boas evidências para crer que sim.6,7

Para saber mais assista à resenha crítica do livro apresentada pelo Prof. Alex Rafacho, clicando aqui.

Referências utilizadas nesse texto:

  1. Willian Bynun. Uma breve história da ciência. Capítulo 14, página 84.
  2. Karl Popper. A lógica da pesquisa científica.
  3. Thomas S Kuhn. A estrutura das revoluções científicas.
  4. Jason Fung. O código do diabetes.
  5. Disponível em: https://www.diabetes.org.br/publico/vivendo-com-diabetes/mitos-e-verdades acessado em 26 de Junho de 2020.
  6. Primary care-led weight management for remission of type 2 diabetes (DiRECT): an open-label, cluster-randomised trial.
  7. Long-Term Effects of a Novel Continuous Remote Care Intervention Including Nutritional Ketosis for the Management of Type 2 Diabetes: A 2-Year Non-randomized Clinical Trial.

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