Por Paulo César Simões-Lopes – Departamento de Ecologia e Zoologia da UFSC
Em seu livro “A Falsa Medida do Homem”, Stephen Jay Gould disseca alguns dos desvios mais sombrios da história da ciência e de como ela foi usada, tendenciosamente, para reproduzir e propagandear preconceitos. A ideia de embasar, cientificamente, preconceitos de racismo como os defendidos pelo médico Samuel George Morton (1799-1851) ou com relação aos criminosos ou às pessoas com problemas mentais ou às diferenças de gênero ou às questões de homossexualidade foi (e pelo jeito continua) uma prática nefasta.
Essas ideias foram usadas para a espoliação de povos colonizados ou para justificar a escravidão e levaram à programas de limpeza étnica e de esterilização em massa de pessoas consideradas “fora do padrão” ou “fora do normal” e isto não apenas na Alemanha nazista, mas também nos Estados Unidos, Turquia, África do Sul, Iugoslávia, União Soviética. Em essência, significava que existiam genes adequados e genes ruins − o que acabou chamado de eugenia −, mas isso se provou absurdo. Era uma subversão da ciência convertida em ideologia, prática que infelizmente não findou, pelo contrário, ela continua nos subterfúgios do machismo…
As mulheres têm sido escondidas, mantidas num eterno segundo plano, mesmo na ciência moderna, onde tiveram as suas maravilhosas descobertas da dupla hélice do DNA, do sistema de classificação de estrelas, da fissão nuclear, dos pulsars, creditadas a colegas do sexo masculino. Vejam o livro de Sergio Erill Sáez, “La Ciencia Oculta”2, para saber o que “As Cientistas Descobriram (e o) Que … e como foram roubadas.
Mas então, em pleno século 21, na era da conectividade, em meio a campanhas de igualdade de gênero, brota (do nada?) um artigo na mais renomada revista científica do mundo e que deixa um QUÊ (em letras maiúsculas) de machismo desenfreado. Em Nature Communications3, neste recente 17 de novembro de 2020, os autores Bedoor AlShebli, Kinga Makovi e Talal Rahwan, de uma universidade em Abu Dhabi, afirmam que mulheres não deveriam ser mentoras (ou orientadoras) de outras mulheres na Academia, já que isso lhes conferiria desvantagens. Mais ainda, dizem que elas deveriam ser orientadas por homens: “Female scientists, in fact, may benefit from opposite-gender mentorships in terms of their publication potential and impact throughout their post-mentorship careers.”
Sem dúvida há aí uma simplificação extrema e que não leva em conta uma miríade de questões históricas, variáveis e medidas não utilizadas no estudo. Foram milhões de dados contabilizados na pesquisa e mais de uma centena de anos amostrados, porém nada muito diferente do que fez George Morton ao “provar”, por medidas do crânio, a “inteligência superior” dos caucasianos contra a dos africanos, tasmanianos, malaios, mongóis e índios americanos. É sabido que Morton adequou os dados aos seus propósitos (uso-os a maneira que lhe convinha).
O próprio Gould havia sublinhado em seu livro que “…os números sugerem, limitam e refutam, mas, por si sós, não especificam o conteúdo das teorias científicas. Estas são construídas sobre a base da interpretação desses números, e os que as interpretam são com frequência aprisionados pela própria retórica.”
Apenas três dias depois vem a réplica de Lindzi Wessel4 [não deixem de ler sua resposta à Nature, publicada na revista Science]: esse estudo nos deixa um “olho roxo”. O que fez o estudo foi encontrar [ou seria buscar] evidências de sexismo sistêmico e propor mais sexismo como solução. Agora a Nature se vê debaixo de uma enxurrada de pedidos de reparação por estar permitindo a replicação de ideias fora de moda e de propósito, ideias, aliás, constrangedoras. Dentre as manifestações de indignação compiladas por Wessel estão a completa inadequação dos índices utilizados pelo estudo, e o uso de termos mal definidos. Novamente o homem busca uma medida que lhe favoreça (que favoreça o gênero masculino), mais uma falsa medida do homem por ele proposta? Uma medida deles para enquadrar a elas?
O círculo vicioso continua a fechar-se, mesmo no alvorecer do século 21. Lembrando: subverter a ciência consiste em ideologia. Vejamos o que nos dizem a Nature e as sociedades científicas em resposta…
Referências utilizadas nesse texto
Que lástima! Mas é bom estarmos sempre atentos, pois apesar de cientistas, somos humanos e imperfeitos, e é normal que as nossas conclusões sejam nubladas por nossas convicções. Sempre há os mal intencionados que manipularão propositalmente seus dados de forma a comprovar mentirosamente alguma teoria distorcida, mas também há, aos montes, quem acabe selecionando resultados distorcidos sem má intenção, mas por acreditar que “aquele resultado discrepante” seja um erro e deva ser subtraído, por não conseguir explicar determinado detalhe que apareceu, ou mesmo por ter feito um delineamento amostral vicioso sem perceber.
A ciência é importante e fantástica, mas é humana. E é a ela mesmo que devemos recorrer para aprimorá-la cada vez mais.