Burocracia, Violência e Estupidez

Por Vitor Klein                                                                                                                         Professor do Depto de Governança Pública da UDESC

Policiais confrontando professores

Policiais confrontando professores

Burocracia é a palavra que usamos quando queremos descrever uma organização lenta, um trabalho enfadonho, ou uma organização com regras exageradas e complicadas. O termo se aplica, na mesma medida, ao setor público e privado. Interessantemente, o setor público é o mais estigmatizado, de onde a solução para os problemas de excesso de burocracia seria o Estado aliviarsua função de controle. Nos últimos 50 anos, a pesquisa sobre organizações tem, de fato, oscilado entre duas posições sobre a burocracia: explicá-la como um sistema obsoleto, incompatível com a necessidade por mudanças e mercados competitivos e, por outro lado, em defendê-la como o sistema que nos garantiria proteção contra comportamentos antiéticos, poderes arbitrários e forças antidemocráticas.

Em seu recente livro, A Utopia das Regras: Sobre Tecnologia, Estupidez e os Prazeres Secretos da Burocracia (2015) [The Utopia of Rules: On technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy (2015)], o antropólogo David Gaeber explora um paradoxo que nenhuma dessas versões parece notar. O paradoxo é o seguinte:

qualquer iniciativa governamental destinada a reduzir a burocracia e promover as forças de mercado terá o efeito final de aumentar o número total de regulamentos, o montante total de papelada, e o número total de burocratas que o governo emprega.

Para Graeber a chamada era pós-burocrática nada mais é do que a era da burocratização total.  Em seu livro, ele nos lembra de que a burocracia sempre teve laços estreitos com o modelo corporativo de organização. Afinal, não é mera coincidência que os lugares onde a corporação obteve maior êxito sejam os dois países mais burocráticos do mundo – Estados Unidos e Alemanha.

Mais que isso, Graeber salienta que o argumento de que a burocracia estaria sendo substituída por uma pós-burocracia é enganoso e perigoso, pois essa ideia dá força para que cada vez mais a linha que separa o que é público do que é privado desapareça. O recente caso dos Papéis do Panamá é um exemplo, no qual o fator mais relevante da evasão fiscal de bilhões ou trilhões de dólares que poderiam ter auxiliado inúmeros governos a resolverem problemas públicos, é que os clientes da Mossack Fonseca teriam agido dentro da lei, ao menos dentro da margem cinzenta dela. Adaptada às circunstâncias atuais, a burocracia teria então se tornado um jogo de experts e nesse caso quem melhor domina as regras, maior poder detém.

Mais grave ainda é que a crescente exigência por papelório, controle, regulamentos, regras e leis teria tornado a burocracia o oposto da justiça racional descrita por Max Weber, pois a burocratização de cada vez mais aspectos da vida está no centro do que Graeber chama de violência estrutural, a manutenção sistemática de desigualdades que, em última análise, são perpetuadas pela ameaça do uso da força.  E essa violência não é apenas simbólica, como salienta Graeber, mas uma violência tão concreta como pancadas de cassetete e a possibilidade de cárcere, caso alguém deseje veementemente se colocar contra a burocracia. Novamente, o caso dos Papeis do Panamá é exemplar. Estima-se que cerca de 14 bilhões de dólares seja o valor perdido em evasão fiscal na África (clique aqui para mais detalhes), dinheiro que poderia salvar a vida de 4 milhões de crianças africanas por ano e empregar professores suficientes para que todas as crianças africanas estivessem na escola.

Vitor - Figura 2

Para a maioria dos brasileiros, africanos e moradores de países em desenvolvimento a violência estrutural da burocracia é um fardo e, no extremo, uma fatalidade.  Foi um fardo para o Sr. Lucélio Correia Barbosa (clique aqui para ver notícia no jornal), transferido dez vezes entre quatro hospitais sem um diagnóstico preciso de sua situação. Foi uma fatalidade para o Sr. Vitalino que, internado no Pronto Socorro de Cuiabá (cidade do centro-oeste brasileiro), foi relatado como morto para logo depois de ser enviado ao necrotério e ser dado novamente como vivo, onde, ironicamente, iria morrer em seguida (clique aqui para ver notícia no jornal). O linguajar acadêmico trata tais situações como disfunções da burocracia. Mas, eufemismos a parte, seria bem possível classificá-las de situações estúpidas, mais propícias de terem saído de um romance de Kafka do que da sociologia de Max Weber.

O trabalho de Graeber traz argumentos interessantes de como a burocracia cria formas de estupidez e violência organizada. Reverter esse quadro é, contudo, mais difícil do que se pode imaginar, visto que tentativas de criar um mundo pós-burocrático acabam por criar ainda mais burocracia. Afetando igualmente a área pública e privada, a burocracia tem colocado barreiras ao desenvolvimento de tecnologias que melhorem substancialmente a vida em sociedade, visto que as inovações tecnológicas dos últimos trinta anos têm contribuído majoritariamente para a manutenção ou melhoria da própria burocracia. Para Graeber a solução para esse impasse seria a sociedade buscar formas de organização em que humanos são tratados como humanos e não como máquinas que respondem a simplificações, regularidades ou padrões.  Nesse quesito Graeber traz lições atuais para países que ainda oscilam entre a completa ausência de burocracia e o excesso dela.

Graeber, D. (2015) The Utopia of Rules: On technology, stupidity, and the secret joys of bureaucracy. London: Melville House Publishing.

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