Por Rita Zilhão Faculdade de Ciências de Lisboa – Portugal
As doenças humanas podem ser causadas pela falta, ou excesso, de produção de uma ou mais proteínas, ou ainda à produção de uma proteína anômala. Contudo, o papel e a função dessas proteínas, especialmente quando relacionadas com doenças específicas, são difíceis de identificar sem um processo de experimentação in vivo. O mesmo se passa com estudos que visam entender melhor qual o papel das proteínas envolvidas no desenvolvimento normal dos organismos, ou dos problemas relacionados com malformações. Por esse motivo, nasinvestigações biomédicas, os estudos que permitem entender os mecanismos moleculares que estão subjacentes aos efeitos causados pela ausência ou excesso de proteínas específicas realizam-se de preferência em modelos animais. Claro que é importante adequar o modelo animal ao estudo em questão. Assim, normalmente, considera-se o fato da espécie ser filogeneticamente próxima ao homem (frequentemente, a escolha recai no rato de laboratório porque, entre outras razões, é um mamífero), mas também a facilidade de manipulação do organismo escolhido, a acessibilidade aos embriões em desenvolvimento (sendo neste caso a galinha o modelo de excelência), a fisiologia do órgão no qual a doença se manifesta etc.
Quando se realizam estudos em que se pretende ver o efeito da ausência de uma proteína específica, os organismos são manipulados de forma a deixarem de produzir a proteína em questão, ou a diminuírem a sua produção. Dizemos, então, que se realizam estudos de perda de função. São várias as metodologias moleculares para realizar estas manipulações, sendo uma das mais utilizadas hoje em dia, a tecnologia baseada no RNA de interferência (RNAi – RNA interference).
Mas o que é o RNAi?
A produção de RNAi é um processo biológico que está presente em diferentes espécies (desde os animais invertebrados aos vertebrados e as plantas) e por esse motivo diz-se que está evolutivamente conservado. Inicialmente, este processo chegou a ser identificado como um mecanismo de defesa antiviral (um agente exógeno); no entanto, hoje em dia sabe-se que o RNAi funciona endogenamente, pois o genoma das células codifica moléculas de RNA, que se designam como miRNAs (microRNAs), estes regulam a expressão gênica das próprias células. Só mais um detalhe: contrariamente ao que se costuma observar nas moléculas de RNA, que se apresentam em cadeia simples, no RNAi, as moléculas de RNA são de cadeia dupla. Se apresentam com duas cadeias complementares formando a tal cadeia dupla (dsRNA – double strand RNA), sejam elas de origem exógena ou endógena.
Agora, como é que se dá então a referida resposta? Ela envolve a ação de uma série de enzimas (Dicer etc. ver figura e vídeo) que transformam, por clivagem, esses dsRNA em pequenos RNAs (os siRNAs – small interfering RNAs). E são estes, os siRNAs, que vão atuar como moldes para que ocorra a degradação de moléculas RNA específicas. Notem aqui um ponto importante: há uma relação de especificidade (por complementaridade de bases) entre o siRNA e a molécula de RNA alvo. Não sei se estão a ver o alcance desse processo biológico: é possível proceder ao “silenciamento gênico” de um determinado gene (já transcrito em RNA) através do seu reconhecimento específico por uma pequena molécula de RNA, o siRNA.
Ora bem, conhecendo então, em maior ou menor detalhe, como funciona este mecanismo, os investigadores descobriram que era possível desenvolver ferramentas moleculares que lhes permitiram silenciar os genes que codificam proteínas envolvidas em diferentes doenças. Exemplos dessas ferramentas são shRNAs (short-hairpin RNAs) sintéticos cuja sequência irá ser processada pelo tal conjunto de proteínas (Dicer etc.), de forma a gerar os siRNAs. Os shRNAs sintéticos são desenhados de modo a apresentarem semelhança estrutural com os miRNAs naturais e contêm sequências que vão se dirigir ao gene alvo que se pretende silenciar.
A boa novidade é que apesar de apresentarem alguma disparidade de resultados, e numerosas variantes quanto aos detalhes dos protocolos aplicados, diferentes estudos baseados na tecnologia do RNAi revelaram que essa é eficiente nos modelos de ratinho, peixe-zebra e galinha, mas também nos invertebrados Caenorhabditis elegans (verme) e Drosophila (mosca da fruta). A perda de função induzida por RNAi poderá mimetizar um estado de doença e as observações feitas no modelo animal adequado são certamente mais assertivas. Por todos os motivos acima indicados esse sistema de silenciamento gênico também começou a ter utilização hoje em dia em terapia gênica, em especial, na infeção por HIV-1.
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