Por Vitor Klein Professor do Depto de Governança Pública da UDESC

Na arte do holandês Cornelis Cort (1533-1578), a dama retórica se inclina enquanto um jovem recebe instrução sobre retórica. Parte das Sete Artes Liberais, a retórica tinha como base a gramática e a lógica. Paolo Quattrone explora como a retórica pode nos ajudar a entender o papel das visualizações contábeis e gerenciais.
Minha esposa costuma dizer que só existe uma profissão mais entediante que a de dentista: a de contador. Considerando que ela é escritora, faz todo sentido. Afinal, se a imaginação é o eixo de sua arte, a contabilidade se ocupa do universo árido do real. Números, indicadores, balanços e gráficos costumam informar, dizem por aí, sobre um estado objetivo da realidade, e cabe a contabilidade suprimir incertezas e ambiguidades normalmente atribuídas à esfera da política e da arte. Paolo Quattrone (2017), no entanto, questiona essa dicotomia ao oferecer uma perspectiva alternativa sobre o papel das visualizações contábeis e gerenciais.
Quattrone argumenta que, para alcançarmos um processo decisório bem sucedido, os gestores devem abraçar a incerteza e a ambiguidade por meio das visualizações contábeis e gerenciais. Como um estudioso da história da contabilidade jesuítica, Quattrone explora como dados gerenciais, tão comuns em discussões e processos decisórios, podem servir não só como representações de algum aspecto objetivo da realidade, mas, principalmente, como meio de indagar e reconhecer o desconhecido.
A retórica estudada por Quattrone não se refere ao sentido pejorativo que o termo adquiriu popularmente, mas sim ao processo de invenção e composição de imagens para a reflexão, prática comum na idade média, e central na prática contábil jesuítica. Ao explicar o papel das visualizações contábeis e gerenciais por meio da retórica, Quattrone vira de cabeça para baixo o entendimento do papel da incerteza nesse processo. Isso porque, se para a ciência, e por consequência para a contabilidade, a incerteza é um problema de conhecimento (episteme) que deve ser resolvido com mais e melhor informação, para a retórica a incerteza é um problema prático, que requer o reconhecimento da ambiguidade inerente às informações e dos conflitos existentes entre atores. Sob a perspectiva da retórica, então, problemas ensejam múltiplas soluções, o que sublinha a necessidade por pensamento crítico e reflexivo diante de tais visualizações. Quattrone oferece seis princípios que auxiliam a pensar e compor tais visualizações com esse propósito.
Os três primeiros são os princípios da oposição, da variedade e da harmonia. Quattrone lembra que a tensão é central para a retórica, pois como prática, a retórica se ocupa em construir pares de termos que, quando colocados lado a lado, podem ser comparados e contrastados; o contraste gerado pela oposição visa promover a especulação e o exercício do julgamento. A ênfase em oposições simétricas é aumentada pela noção de variedade, o segundo princípio explicado por Quattrone. variedade possui, contudo, conotação ampla, refere-se aos vários graus de experiência ao longo de um continuo entre opostos. O princípio da variedade remete, portanto, à necessidade de se explorar os diferentes caminhos e padrões na composição de imagens pelas quais se possa exercitar um julgamento. E ainda assim, a variedade não precisa ser levada ao extremo, pois para que a curiosidade floresça certa parcimônia é aconselhável. A compreensão de como articular o julgamento entre variedade e curiosidade requer treino e senso de harmonia estética, o terceiro princípio elencado por Quattrone.
As composições retóricas visam, no entanto, que um participante seja chamado a decidir sobre algo e executar certa ação, o que nos leva a três outros princípios explicados por Quattrone: o da intenção, o da divisão e o da indiferença. Segundo Quattrone, toda escolha implica uma intenção, um propósito que não precisa ser fixo, mas deve ser visto como um movimento pelos vários caminhos que as visualizações oferecem. Tal intenção está sempre “em tensão”, isto é, entre diferentes alternativas, logo manter essa tensão é crucial quando se avalia altenarativas. Quanto ao quinto princípio, o da divisão, Quattrone explica que escolhas requerem a habilidade de calcular para além dos números, incluindo a habilidade de manipular letras, partes de textos, cores, etc. Enfatizando tanto a habilidade espacial como a visual, o princípio da divisão sugere que devemos não somente ver, mas também imaginar as soluções por meio das visualizações contábeis. Por fim, Quattrone explica que para abraçar a ambiguidade gerada por múltiplos caminhos e cursos de ação, é preciso que a pessoa habite o meio termo da diversidade, isto é, é preciso ser in-diferente para as diferentes escolhas, indiferença que, segundo ele, faz com que, por uma visualização equidistante dos opostos, gere-se unidade da diferença e ao mesmo tempo mantenham-se os opostos evidentes.
Talvez a arte da minha esposa não seja, afinal, tão diferente da arte da contabilidade. Como escritora ela deve se preocupar com o processo de comunicação, e a comunicação é de fato preocupação central para a contabilidade e para o desenvolvimento de visualizações gerenciais. Não é a toa que quando Luca Pacioli, pai da contabilidade moderna, escreveu a Summa de Arithmetica, sua preocupação com a geometria, proporção e proporcionalidade eram evidentes[1]. Pensar então que, por meio das visualizações contábeis e gerenciais gestores devem abraçar a ambiguidade, a controvérsia e a tensão, é algo menos radical do que pode parecer. Afinal, como lembra Quattrone, contadores profissionais sabem que a contabilidade é ambígua e pesquisadores reconhecem o caráter contingente dos artefatos gerenciais, mesmo quando o senso comum entende o contrário. Se os conselhos do Professor Quattrone ajudarem a repensar o papel dessas visualizações nas organizações, sua contribuição será duradoura.
Para acessar o texto de Paolo Quattrone (2017), clique aqui.
[1] Aho, J A., Rhetoric and the Invention of Double Entry Bookkeeping, Rhetorica (Winter, 1985)pp 21–43