Redescobrindo um velho fármaco para o tratamento do novo coronavírus (SARS-CoV-2)

Por Izabella Thaís da Silva – Dpto. de Farmácia, UFSC

Para um medicamento ser lançado no mercado farmacêutico, ele precisa cumprir diversas etapas de pesquisas e testes até ser aprovado pelo órgão competente do país produtor. O processo de regulamentação de um novo medicamento é longo, rigoroso e custa muito caro para a indústria farmacêutica. Para se ter ideia, são necessários, em média, 15 anos e mais de 500 milhões de dólares para que um novo fármaco alcance as prateleiras das farmácias.

O processo de desenvolvimento de um novo medicamento deve cumprir diversas etapas, desde as que precedem seu uso por seres humanos até o acompanhamento após o lançamento do medicamento no mercado, para monitorar possíveis reações prejudiciais à vida das pessoas (farmacovigilância). Portanto, é necessário adotar novas estratégias para reduzir o período de descoberta de novos medicamentos, especialmente em situações de epidemia como estamos passando, em nível mundial, com o novo coronavírus (chamado pelos cientistas de SARS-CoV-2). Hoje, o reaproveitamento de medicamentos, também chamado de reposicionamento de fármacos (do inglês drug repurposing) ganhou importância na identificação de novos usos terapêuticos para medicamentos já disponíveis, uma vez que todos os detalhes sobre o seu desenvolvimento já são conhecidos, desde as etapas de síntese química e processos de fabricação até informações sobre os testes de segurança e de eficácia, reduzindo o tempo e custos necessários para sua aprovação.

[Para maiores informações sobre o processo de descoberta, desenvolvimento e reposicionamento de fármacos, clique aqui para acessar um importante trabalho de revisão sobre o tema]1.

Neste sentido, cientistas descobriram que um medicamento chamado REMDESIVIR, originalmente desenvolvido para tratar o vírus Ebola, pode ser uma opção de tratamento da COVID-19, doença provocada pelo SARS-CoV-2.

Em dezembro de 2019, uma nova pneumonia causada por um microrganismo anteriormente desconhecido surgiu em Wuhan, uma cidade de 11 milhões de pessoas no centro da China. Os casos iniciais estavam ligados a exposições a um mercado de frutos do mar em Wuhan. Em 27 de janeiro de 2020, as autoridades chinesas relataram 2.835 casos confirmados na China continental, incluindo 81 mortes. Em 21 de abril de 2020 já eram 1.324.907 casos confirmados de COVID-19 e 73.703 mortes ao redor do mundo, sendo 351.890 casos da doença só nos EUA (para informações em tempo real sobre o SARS-CoV-2, clique aqui). No Brasil, o número de casos confirmados da doença vem aumentando, com um total de 40.814 casos e 2.588 mortes até o dia 21/04/2020. O patógeno logo foi identificado como um novo coronavírus (SARS-CoV-2)2, pertencente a uma família de vírus que causam doenças que variam desde o resfriado comum até doenças mais graves, como a Síndrome Respiratória Aguda. O SARS-CoV-2 pertence ao gênero Betacoronavírus, o qual também engloba os vírus SARS-CoV e MERS-CoV (outros coronavírus já conhecidos). Atualmente, não há tratamento para COVID-19. Portanto, é de extrema necessidade identificar agentes antivirais eficazes para combater a doença. O genoma, as etapas de replicação e a biologia dos vírus MERS, SARS e SARS-CoV-2 são muito semelhantes, portanto, testar medicamentos que tenham como alvo partes comuns desses coronavírus é um passo racional; além disso, testar medicamentos antivirais já aprovados aplicando a estratégia do reposicionamento de fármacos também é uma ótima opção.

O estudo liderado pela equipe do pesquisador Matthias Götte, da Universidade de Alberta, Canadá, mostrou que o medicamento REMDESIVIR (o qual foi desenvolvido pela indústria farmacêutica Gilead Sciences, em 2014, para tratar a epidemia de Ebola no oeste da África) inibiu de forma bastante efetiva os coronavírus SARS-CoV e MERS-CoV, os quais são bastante semelhantes ao novo vírus SARS-CoV-2. E mais que isso, eles demonstraram que o medicamento inibiu uma importante enzima responsável pela replicação viral3. Para entender como esse medicamento atua, imaginem que todos os coronavírus utilizam a maquinaria da célula infectada para copiar seu material genético (que no caso dos coronavírus é constituído por RNA) e uma enzima conhecida como RNA polimerase dependente de RNA. Quando esses pesquisadores usaram as enzimas polimerases dos coronavírus já conhecidos MERS-CoV e SARS-CoV, eles perceberam que o REMDESIVIR era incorporado à cadeia de RNA formada por essa enzima que, em seguida, deixava de adicionar mais subunidades de RNA, impedindo assim o alongamento da cadeia, a replicação do seu genoma e, consequentemente, a “construção” do vírus. De uma forma mais simples e para entender como o REMDESIVIR funcionaria, vamos fazer uma analogia ao brinquedo Lego… Imaginem que o REMDESIVIR seja uma peça semelhante a uma peça do brinquedo Lego, parecida o suficiente para permitir que ela se encaixe em outras peças, mas diferente o bastante para impedir que as outras peças do Lego se encaixem sobre ela. Então, ao iniciar a montagem do brinquedo de Lego, aleatoriamente pode-se utilizar uma dessas peças semelhantes (no caso, o REMDESIVIR), porém, ao se fazer isso, as outras peças não poderiam mais ser encaixadas, interrompendo a construção do brinquedo.

Corroborando essa ideia, outros pesquisadores demonstraram que o REMDESIVIR inibiu eficientemente a replicação de um isolado clínico do novo coronavírus SARS-CoV-2 em cultura de células de laboratório, especialmente quando esse medicamento foi adicionado após a infecção das células pelos vírus, confirmando que o seu efeito acontece após a infecção viral justamente no momento onde acontece a síntese das cadeias de RNA do novo vírus, ou seja, do material genético do vírus essencial para sua sobrevivência4.

Além dos estudos em laboratório, a eficácia do REMDESIVIR pôde ser verificada no primeiro paciente testado positivo para SARS-CoV-2 nos Estados Unidos5. O paciente de 35 anos que relatou ter viajado para a China dias antes, foi internado em 20 de janeiro no Providence Regional Medical Center, em Everett, EUA depois que os esfregaços nasofaríngeos e orofaríngeos deram positivo para SARS-CoV-2. Seus sintomas incluíam febre, tosse, fadiga, vômito e diarreia. Na noite do sétimo dia de hospitalização do paciente, ele recebeu uma infusão de REMDESIVIR. No dia seguinte, o apetite do paciente e a saturação de oxigênio melhoraram. Em 30 de janeiro, todos os seus sintomas haviam desaparecido, exceto a tosse, embora tivesse diminuído em gravidade.

De fato, a indústria Gilead Sciences junto com as autoridades de saúde chinesas, estão testando o REMDESIVIR em dois ensaios clínicos controlados desde fevereiro de 2020, com data estimada para término em abril do mesmo ano. Os dois estudos podem ser acompanhados pelos clicando em um desses dois links: NCT04257656, NCT04252664. Importante destacar que o REMDESIVIR só será liberado para tratar COVID-19 após a conclusão de todos os ensaios clínicos que comprovem sua eficácia para a nova doença.

Medidas simples de prevenção como a desinfecção de mãos e superfícies com agentes biocidas adequados (álcool 70% e água sanitária, por exemplo), atrelado à disponibilidade de um medicamento para o tratamento de pacientes com a doença COVID-19, poderiam se tornar um alento para a comunidade mundial que vive um momento de pandemia ocasionado por esse novo vírus.

Para saber mais, acesse:

  1. Drug repurposing: a promising tool to accelerate the drug discovery process.
  2. Coronavirus from Patients with Pneumonia in China,.
  3. The antiviral compound remdesivir potently inhibits RNA-dependent RNA polymerase from Middle East respiratory syndrome coronavirus.
  4. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro.
  5. First Case of 2019 Novel Coronavirus in the United States.

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