Por Paulo César Simões-Lopes, Dpto de Ecologia e Zoologia, UFSC

Nos vemos como uma espécie apartada do todo, o apogeu da evolução, o pináculo. É uma ideia colorida, mas é também uma fantasia tola a qual estamos apegados. Com quem partilhamos o trono de nossa longa linhagem evolutiva? Quem é nossa espécie irmã? Aquela com a qual temos um ancestral comum?
O mais nobre e conhecido de nossos parentes imediatos, o neandertal, reinou livre e desimpedido, por anos, ocupando o lugar de honra ao nosso lado. Aí estava nossa espécie irmã, um tanto robusta para nossos padrões soft: narizes largos, ossos pesados, supercílios proeminentes, pernas arqueadas. Então, lá por 2008, descobriu-se os denisovanos. Um novo pretendente ao trono? Uma variação asiática do neandertal? Fica a dúvida…
Agora voltemos quase cem anos para encenar uma nova peça em três atos.
Ato número 1: em 1933, durante a construção de uma ponte no Rio Songhua, no nordeste da China, um trabalhador comum recuperou um crânio bastante completo, mas vivia-se a invasão japonesa na Manchúria e o seu descobridor resolveu escondê-lo longe dos olhos do odioso invasor. O que levou este homem a ver ali uma preciosidade permanece um mistério, mas anos antes se havia anunciado, com toda pompa, a descoberta do tal homem de Pequim (Homo erectus).
Ato número 2: vem a Segunda Guerra Mundial e o sanguinário extermínio do povo chinês pelo Império japonês. A China é destroçada de ponta a ponta. Depois, tomou fôlego o movimento comunista de Mao, a revolução cultural e, por fim, a China partiu da pré-história para o mundo moderno num salto veloz.
Ato número 3: o tal crânio permaneceu escondido esse tempo todo até que um familiar (mais precisamente a terceira geração do tal operário que participara da construção da ponte), resolveu recuperá-lo. Estamos agora em 2018 e o misterioso tesouro da província de Harbin volta a “ver” a luz do sol.
Só então, os Cientistas Descobriram Que não se tratava apenas de um tesouro de família, mas uma nova entidade apelida então de homem de Harbin1. Era um mosaico de caracteres primitivos e derivados, com uma caixa craniana de 1.420 mililitros, isto é, dentro da amplitude cerebral do humano moderno e dos neandertais! Foi assim que a China, o berço de várias espécies de hominídeos, voltou ao estrelato com o seu novo “homem dragão”, hoje depositado no Geoscience Museum of Hebei GEO University.

As suturas cranianas sugerem que fosse um homem de 50 anos, idade avançada para um homem antigo. Análises geoquímicas, raios X fluorescentes, isótopos de estrôncio, análise de elementos raros, datações com urânio e técnicas de estratigrafia, levaram a uma estimativa de 146 milhões de anos (m.a.). Mais do que isso, os paleontólogos chineses o veem como uma nova espécie2, que eles denominaram de Homo longi.

Mas as disputas pelo trono, onde deve reinar a espécie irmã da nossa, nunca se mostraram simples. Anos antes, outra espécie chinesa havia sido descrita (Homo daliensis). Quem é quem nesse enlace complexo? O homem dragão seria o mesmo daliensis ou vice-versa? Seriam ambas variações dos denisovanos? Existe miscigenação entre essas várias espécies antigas contemporâneas entre si? É provável que sim. Nossa linhagem nunca se mostrou muito seletiva esse tempo todo e isto é particularmente verdadeiro quando estamos isolados, sem contato com “os nossos”. Migrações, isolamento, miscigenação são o caldo perfeito para toda sorte de variações e a China está no centro dessa efervescência fascinante.
Em 1929, quando o homem de Pequim veio à baila também era visto como um fóssil revolucionário, mas depois mostrou-se mais uma variação do bem-sucedido H. erectus. O que dizer agora do homem dragão, nascido na era do DNA e de todos esses testes sofisticados que a ciência moderna tem a oferecer? O homem alto de 50 anos, como foi descrito, é mesmo o mais novo soberano na guerra dos tronos?

Ainda estamos no Ato número 3 e a peça a se desenrolar no palco da ciência moderna. O que mais os cientistas nos dirão nos próximos anos… Fato é que não somos o apogeu. Somos o que restou, o que ainda não desapareceu, o sapiens que não sabia ter tantos irmãos de sangue.
Quando partiremos para o Ato número 4? Esse é o ponto: partiremos? Temos tanto sangue enterrado a ser descoberto ainda…
Para saber mais:
1- Geochemical provenancing and direct dating of the Harbin archaic human cranium
2- Late Middle Pleistocene Harbin cranium represent a new Homo species