Italianas que escaparam do Holocausto, fatores de crescimento, Brasil e um prêmio Nobel. Como tudo isso se entrelaça?

Por Giordano W. Calloni, Dpto de Biologia Celular, Embriologia e Genética da UFSC 

Em meu último post para esse blog, em 30 de novembro de 2021 (clique aqui para acessar), apresentei um pouco para vocês de um dos estudos de nosso colega Bruno Costa da Silva. Em resumo, Bruno mostrou que tumores primários do pâncreas são capazes de preparar o fígado para metástasesE fazem isso através de exossomos. Relembrando: exossomos são diminutas esferas de lipídeos e proteínas que carregam em seu interior desde proteínas até pedacinhos de DNA e RNA, por exemplo.

Hoje falarei de um outro trabalho, publicado em 2021 na revista Science, que vai na mesma linha do que foi demonstrado por Bruno em 2015. Cientistas descobriram que um fator de crescimento (produzido por vasos sanguíneos) estimula a metástase de células tumorais.

O leitor menos familiarizado com os termos científicos deve estar se perguntando, mas afinal: o que é um fator de crescimento? Vale a pena fazer um (longo) parágrafo e contar um pouco a história da descoberta dos fatores de crescimento, até porque, parte importante dela se passou no Brasil.

Há exatos 70 anos, em 1952, uma italiana estava chegando à cidade do Rio de Janeiro. Se fosse nos dias atuais e a fiscalização do aeroporto a parasse, ela receberia uma salgada multa, pois carregava escondidos em seu bolso, pasmem, dois camundongos. Quem imaginaria que essa mulher, pouco mais de 30 anos, depois (em 1986) estaria ganhando o prêmio Nobel? Essa mulher se chamava Rita Levi Montalcini.

 Foi Rita quem descobriu o primeiro fator de crescimento descrito na literatura e ganhou o mais alto prêmio da ciência mundial, por essa descoberta. Mas o que Rita veio fazer durante três meses no Brasil e o que isso tem a ver com o prêmio Nobel que ganhou? Rita podia ter feito seus experimentos nos Estados Unidos, onde vivia na época. Mas, confessou, certa vez, que havia uma razão forte para vir ao Brasil: era seu sonho conhecer o nosso País, e, coincidentemente, aqui se encontrava sua grande amiga, Hertha Meyer. Ambas judias, fugiram dos nazistas quando estes invadiram a Itália. Hertha trabalhava, desde 1939, como pesquisadora na antiga Universidade do Brasil (hoje UFRJ), sob supervisão do prof. Carlos Chagas Filho. Aqui, Hertha trabalhava com a técnica de cultivo de células, justamente o que Rita precisava para testar sua hipótese: a de que tumores secretariam substâncias capazes de promover o crescimento de neurônios. Mas de onde Rita formulou essa hipótese? Rita repetiu os experimentos de um ex-aluno do proeminente pesquisador Viktor Hamburger, e observou que certos tumores de músculos retirados de camundongos e implantados em pintinhos promoviam o crescimento de fibras neuronais de forma contundente. As fibras neuronais cresciam tanto que chegavam a invadir o próprio tumor. Rita sagazmente pensou: será que existiriam substâncias secretadas pelos próprios tumores que promoveriam esse crescimento das outras células? Pois bem, para responde-la, Rita fez o chamado experimento in vitro, a técnica dominada por Hertha. Para fazer isso, ela retirou um pedacinho dos tumores das cobaias clandestinas e colocou em uma pequena placa feita de um plástico especial.

Mas não foi apenas isso, os tumores foram postos nessa placa em contato com gânglios simpáticos de embriões de galinha e colocados em uma estufa com temperatura (37°C) e CO2 (5%) controlados. Como grupo controle, as pesquisadoras prepararam uma cultura apenas de gânglios de embriões, sem os tumores presentes. O resultado da experiência foi entusiasticamente narrado pelo próprio prof. Carlos Chagas Filho: “Foi espetacular, pois o gânglio com células de tumor tinha lançado inúmeras fibras nervosas—e nada tinha acontecido com o outro gânglio. É raro uma experiência ter sucesso logo na primeira tentativa. Mas nesse caso o êxito era tão evidente, que mandei estourar uma champagne Moët et Chandon para comemorar”.

Cerca de três meses depois, Rita voltou aos Estados Unidos, e agora munida da comprovação de sua hipótese, precisava descobrir qual(is) substância(s) poderia(m) ser a(s) responsável(is) pelos efeitos observados. Assim, trabalhando incansavelmente cerca de dois anos com o bioquímico Stanley Cohen, conseguiu isolar uma proteína que seria a responsável por promover o crescimento dos neurônios. E não foi à toa que essa proteína recebeu o nome de “Nerve Growth Factor” (traduzindo: fator de crescimento de nervos) ou simplesmente, o acrônimo NGF. Este foi o primeiro fator de crescimento descrito na literatura e, como já mencionado, garantiu o prêmio Nobel à Rita Levi Montalcini e Stanley Cohen, no ano de 1986.

Pois, bem, sabendo agora que um fator de crescimento nada mais é do que uma proteína com a propriedade de estimular o crescimento de células, podemos voltar à descoberta publicada mais recentemente. Os cientistas implantaram tumores primários pulmonares em camundongos e observaram que, unicamente na presença desse tumor, as células que revestem o interior dos vasos sanguíneos passam a produzir uma proteína chamada LRG1 em grandes quantidades. Esta proteína atua como um fator de crescimento e ao ser liberada sistemicamente no organismo estimula o crescimento de células de tecido conjuntivo próximas no pulmão. Isso acaba por criar um microambiente (nicho) promotor de crescimento de células tumorais. Por exemplo, em outro experimento do grupo, camundongos com altas concentrações sistêmicas de LRG1 exibiram um forte aumento de metástases de melanomas nos pulmões.  Portanto, como nos experimentos em que Bruno nos descreveu em seu trabalho de 2015, é como se LRG1 liberada sistemicamente atuasse e funcionasse como um dos elementos presentes nos exossomos. LRG1 atua à distância preparando o terreno para que células tumorais circulantes possam se estabelecer e crescer em metástases pulmonares. Importante, a partir de um certo tamanho, essas metástases passam a funcionar como um tumor primário, novamente promovendo a produção de mais LRG1. Uma meta-análise de vários estudos clínicos anteriores revelou um aumento nos níveis de LRG1 no soro de pacientes afetados por diferentes tipos de câncer, incluindo tumores colorretais, gástricos, pulmonares, ovarianos e pancreáticos. Portanto, LRG1 poderia ser um bio-marcador importante a ser avaliado na progressão de metástases. 

Imagino que, a essas alturas, o leitor percebeu, o quanto, as descobertas pioneiras de Rita Levi Montalcini e Hertha Meyer foram importantes em permitir os avanços no conhecimento que temos a respeito de tumores hoje em dia. É curioso pensarmos que ambas poderiam ter morrido em um grande campo de concentração em Fóssoli, perto de Módena. Afinal, era para lá que os italianos foram enviados, e um dos sobreviventes, Primo Levi, que era um químico, amigo de Rita (não eram parentes) escreveu um dos mais contundentes livros a respeito das atrocidades nazistas: Se questo è um uomo? (É isto um homem?). Na página 19 do livro, Primo Levi nos conta que seu vagão contava com 45 pessoas e apenas 4 tornariam a ver suas casas. Ele era um entre os 4 sobreviventes. E, segundo ele, seu vagão foi de longe, o vagão mais afortunado. Viva Rita e viva Hertha, que puderam sobreviver para nos legar uma das descobertas mais importantes da Ciência, parte importante dela, feita no Brasil. 

Para saber mais:

Artigo Original: Temporal multi-omics identifies LRG1 as a vascular niche instructor of metastasis. Sci

Excelente reportagem de Monica Falcone e Suzana Veríssimo.

Página prêmio Nobel conferido à Rita Levi Montalcini

Livro:

Primo Levi. É isto um homem?  Editora ‏Rocco

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