Uma distante origem da arte de curar: quem criou a Medicina?

Por Paulo César Simões-Lopes – Departamento de Ecologia e Zoologia – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

De fato, Hipócrates (460-377 a.C.) foi um cara e tanto. Nascido numa linhagem de médicos, ele deu um salto quântico em sua época e seus preceitos acabaram contidos no juramento dos médicos modernos. E ele anteviu os desvios que poderiam acontecer: “Nunca me servirei da profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime”. Fundamentalmente, a peste de Atenas o permitiu conceber, entre tantos conceitos terapêuticos, a distinção entre sintomas e doenças.

Busto de Imhotep – Museu de Imhotep, Egito

Numa terra de tantos deuses e mitologias coube a Asclépio (Esculápio) a aura do que seria a origem da medicina. Ele é citado em um dos escritos mais antigos do mundo ocidental (Ilíada) e aparece ora como homem ora como deus. Mas o certo é que outros médicos já haviam feito diagnósticos e tratamentos antes e, dentre eles, está Imhotep (2.655 – 2.600 a.C.), que deixou em papiros no antigo Egito seus registros extraordinários de casos médicos e tratamentos.

Ok, todos sabemos que curandeiros e xamãs receitaram chás, óleos e emplastos com ervas, apressaram cicatrizações, aliviaram dores e febre e tudo isso está repleto de acertos e erros. Assim é com tudo o que criamos… ou copiamos?

A tal medicina tradicional teve muitos inícios em diferentes lugares, inclusive fora de nossa espécie. Às vezes experimentamos por nós mesmos e outras copiamos. Muitos dos povos originários demonstraram (e demonstram) notável capacidade de observação da natureza e, talvez observando os outros animais, chegaram ao que chamamos de invenções “nossas”. Como mencionamos em outra postagem, sabe-se de casos de elefantas prenhes que comem folhas de certas árvores para induzir o parto, ou de babuínos que comem as folhas de uma determinada planta para combater os vermes e de golfinhos que se esfregam em corais e esponjas do mar, que contém substâncias antimicrobianas1

Então vamos lá. Os Cientistas Descobriram, faz algum tempo, Que muitos primatas se valem de uma medicina experimental, mas recentemente puderam acompanhar as pacientes sessões de automedicação em um orangotango de Sumatra (Pongo abelii)2,3. Os orangotangos são primatas geralmente solitários, mas incrivelmente inteligentes e podem vencer você (e principalmente eu), em joguinhos de computador.

Rakus, o orangotango de Sumatra

Os cientistas acompanharam seu objeto de estudo (chamado por eles de Rakus) por várias semanas seguidas, e identificaram uma ferida aberta logo abaixo do olho direito e outra dentro da boca. Isto ocorreu em 22 de junho de 2022. A ferida rósea contra a face escura de Rakus era facilmente identificável. Então Rakus começou a mascar as folhas de um cipó comum nas florestas primárias do Sudeste da Ásia. Rakus as mascava sem engolir e depois usava os dedos para aplicar o suco da planta diretamente na boca e no ferimento da face. Esse comportamento foi repetido por várias vezes e depois ele esfregou a própria pasta de folhas diretamente nas feridas. 

De pronto os cientistas coletaram as folhas do tal cipó e o identificaram como Fibraurea tinctoria, uma liana ou trepadeira da família Menispermaceae, e essa planta já era reconhecida pela ciência por sua ação anti-inflamatória, analgésica e antipirética, além de outras qualidades4. Ela possui altas concentrações de um determinado alcaloide, um composto químico que costuma agir no sistema nervoso central.

Folhas frutos e sementes da trepadeira Fibraurea tinctoria

Acompanhando Rakus nas semanas seguintes, Isabelle B. Laumer e seu grupo em campo perceberam que a ferida da face rapidamente regrediu. Menos de dez dias depois ela estava praticamente fechada e no dia 19 de julho restava apenas uma leve cicatriz.

Rakus antes e depois da automedicação

Agora temos de ponderar sobre assuntos bem desafiadores como a intencionalidade de Rakus em sua automedicação e se esse foi um caso isolado, isto é, uma inovação individual. 

Em 21 anos de estudo nenhum outro caso de automedicação foi observado nessa população de orangotangos, todavia sabe-se que os machos dessa espécie dispersam e, portanto, Rakus pode ter vindo de outra área próxima. Essa planta é um alimento raro na dieta dos orangotangos e Rakus a utilizou repetidas vezes apenas no local da ferida, repetiu o procedimento várias vezes e se demorou bastante tempo no processo. Mais do que isso, não se limitou a molhar a ferida com o suco da planta e sim cobriu-a com um emplasto. 

Sabemos que os compostos dessa planta possuem um potente efeito analgésico e podem gerar um alívio imediato, levando nosso inventivo orangotango a repetir o processo. Seria Rakus apenas um inovador curioso? Ou ele teria aprendido essa arte da cura em sua comunidade original? Ora, os jovens orangotangos costumam aprender por imitação direta e mesmo os adultos também estão habilitados a fazê-lo. Portanto, estamos frente a um gênio incompreendido ou simplesmente a um indivíduo que copiou outros de sua linhagem? Assim como nós… (Genialidades aparte), copiar é nossa arte maior.

Esse passo (ou essa resposta) ainda não podemos dar, mas sabemos que outros macacos inventivos como chimpanzés e babuínos lidam com problemas intestinais, usando soluções disponíveis na farmacopeia5 da floresta. Teríamos nós mesmos imitado algum desses primatas ou elefantes ou golfinhos na tentativa de aliviar as nossas dores? Estaria aí a origem distante da Medicina? Um observador astuto acompanhando outros modelos vivos e copiando-os?

Como dissemos no início, os povos originários sempre demonstraram uma grande capacidade de observação da natureza. Assim, quem criou a medicina?

Para saber mais:

  1. https://cientistasdescobriramque.com/2023/06/28/alerta-vermelho-no-mar-vermelho-golfinhos-que-se-automedicam/
  2. Active self-treatment of a facial wound with a biologically active plant by a male Sumatran orangutan. 
  3. Wild orangutan actively treats wound with a healing plant.
  4. Anti-inflammatory activities of furanoditerpenoids and other constituents from Fibraurea tinctoria.
  5. Arte de preparar, compor ou usar medicamentos naturais – Fitoterapia.

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