Mas e a ivermectina?

Por Daniel Fernandes, Departamento de Farmacologia UFSC

Recentemente, escrevi aqui um texto comentando estudos que mostram a ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento do novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19 (Afinal, temos evidências para o uso da hidroxicloroquina na COVID-19?). Curiosamente, a pergunta que mais ouvi dos leitores foi sobre a ivermectina. “Mas e a ivermectina? Funciona para COVID-19?”. De fato, esta é uma pergunta muito relevante e que merece ser abordada!

A ivermectina é um fármaco indicado para o tratamento de doenças parasitárias, desenvolvido há mais de 50 anos. Devido a importância da ivermectina no combate de doenças parasitárias, a descoberta do medicamento rendeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2015 aos pioneiros dos estudos, o irlandês William Campbell e o japonês Satoshi Omura (Prêmio Nobel 2015: medicina, física e química).

Mas a discussão atual sobre a ivermectina começou após a publicação de um estudo que mostrou que o fármaco é capaz de reduzir a replicação do vírus SARS-CoV-2 in vitro1 (células cultivadas em laboratório). Desde então, alguns estudos observacionais têm sugerido uma potencial eficácia da ivermectina contra COVID-19. Junto com isso surgiram muitas notícias e promessas de que a ivermectina teria atividade imunológica e antiviral. 

Mas afinal o que sabemos até o momento?

Em relação ao estudo in vitro1, é importante chamar a atenção que estudos como este são muito preliminares. A concentração de ivermectina que apresentou efeito antiviral neste estudo foi muito alta e nunca seria atingida com a dose padrão de ivermectina recomendada para o tratamento de doenças parasitárias2,3. Devido a isso, alguns pesquisadores argumentam que não há justificativa para a realização de estudos clínicos com a dose padrão antiparasitária de ivermectina para o tratamento da COVID-194,5. Seriam necessárias doses bem mais altas para se obter o efeito antiviral, porém estas doses podem ser tóxicas, o que exige estudos adicionais para verificar a segurança, além da eficácia. 

Quanto aos estudos observacionais, alguns sugerem que a ivermectina reduz a mortalidade na COVID-19. Em um dos maiores estudos observacionais publicados, os autores avaliaram 173 pacientes que receberam ivermectina e 107 que não receberam. A mortalidade no grupo que recebeu ivermectina foi de 15%, enquanto no grupo não tratado foi de 25%6. Entretanto, em estudos observacionais os pesquisadores não fazem nenhuma intervenção, eles simplesmente observam a evolução dos pacientes que recebem ou não o medicamento. Logo, não é possível controlar adequadamente uma série de fatores que podem confundir os resultados. Por exemplo, 39,8% dos pacientes do “grupo ivermectina” receberam também corticosteroides, fármacos que sabidamente reduzem a mortalidade de pacientes graves7. Porém, no grupo controle, apenas 19,6% receberam este medicamento. Em outras palavras, como desconsiderar o efeito dos corticosteroides? Os autores até fazem algumas análises para minimizar este viés, mas com isso eles tem que reduzir o número de pacientes analisados por grupo enfraquecendo a evidência. Devido a estas limitações, tais estudos não são adequados para avaliar a eficácia de fármacos e já criaram bastante confusão para a comunidade médica4,5, sendo o exemplo da hidroxicloroquina o caso mais óbvio disso. Existem vários outros estudos observacionais publicados, porém, no geral, são de tão baixa qualidade científica que não merecem ser comentados.

Para que tenhamos uma resposta definitiva sobre a eficácia e segurança da ivermectina no tratamento da COVID-19, são necessários estudos clínicos em que os pacientes são alocados para os grupos de forma aleatória (chamados de estudos randomizados). Além disso, é importante que os estudos sejam controlados com o uso de placebos e cegos, isto é, ninguém sabe quem está recebendo fármaco ou o placebo. Neste tipo de estudo, diferente daqueles observacionais, o pesquisador planeja e intervém ativamente nos fatores que podem confundir o resultado. Recentemente, em um estudo clínico com estas características, os cientistas demonstraram que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-198. Este estudo foi conduzido na Colômbia com 400 pacientes. Metade desse grupo recebeu ivermectina por 5 dias e o restante foi tratado com placebo. Não houve diferença relevante nos resultados do tratamento entre os dois grupos. Após 21 dias, 82% dos voluntários no grupo de medicação tiveram seus sintomas resolvidos, em comparação com 79% no grupo do placebo.

Mas este estudo, embora seja um dos melhores publicados até o momento, está longe de ser definitivo. O estudo tem um número considerado ainda pequeno de pacientes e que não permite uma análise da progressão da doença. 

Felizmente, vários estudos estão a caminho. Existem atualmente mais de 60 estudos clínicos registrados no site do governo americano com o objetivo de testar a ivermectina na COVID-19 (clinicaltrial.gov, verificado em 16/06/2021). Portanto, seria prematuro concluir que a ivermectina não tem lugar no tratamento da COVID-19. No entanto, com base nas evidências atuais, seu uso não pode e nem deve ser recomendado. A Organização Mundial da Saúde já emitiu diretrizes contra o uso rotineiro de ivermectina no tratamento de COVID-19.

Por fim, vale lembrar que uma única dose de ivermectina, embora eficiente para doenças parasitárias, não tem capacidade de “imunizar” contra a COVID-19. Aliás, embora as promessas nas redes sociais de medicamentos “milagrosos” sejam numerosas, até o momento, apenas a vacina é eficaz em prevenir a doença! Vacina para todos! E logo! 

Para acessar os artigos utilizados para o texto, clique nos links abaixo:

1- The FDA-approved drug Ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2 in vitro

2- Ivermectin as a potential COVID-19 treatment from the pharmacokinetic point of view: antiviral levels are not likely attainable with known dosing.

3- The Approved Dose of Ivermectin Alone is not the Ideal Dose for the Treatment of COVID-19.

4- Remarks About Retrospective Analysis of Ivermectin Effectiveness on Coronavirus Disease.

5- Standard Dose Ivermectin for COVID-19.

6- The Ivermectin in COVID Nineteen Study.

7- RECOVERY Collaborative Group. Dexamethasone in hospitalized patients with Covid-19:preliminary report.

8- Effect of Ivermectin on Time to Resolution of Symptoms Among Adults With Mild COVID-19: A Randomized Clinical Trial.

Um comentário sobre “Mas e a ivermectina?

  1. Gostei muito do artigo. Porem existem diversos artigos que testaram diferentes drogas in vitro e até mesmo in vivo em animais de laboratorio com efeitos satisfatorios como exemplo (Broad Anti-Coronavirus Activity of the Food and Drug Administration-Approved Drugs against SARS-CoV-2 In Vitro and SARS-CoV In Vivo). Aqui no Brasil, também estudamos alguns medicamentos in vitro e chegamos às mesmas conclusões. Pelo exposto, fica dificil acreditar que em humanos essas drogas não tenham o mínimo efeito sobre a inibição do coronavirus. Fico pensando que talvez os medicamentos não estejam atingindo seu alvo, pois são administrados por via oral. Então gostaria de saber se seria viável fazer testes in vivo em cobaias, mas com os medicamentos sendo administrados por inalação ou nebulização? Acredito que se funcionasse, seria muito mais fácil testá-lo em humanos imediatamente.

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