Por Edroaldo Lummertz da Rocha do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia

O câncer é uma doença complexa, heterogênea e multifatorial que acomete milhões de pessoas. Embora os tratamentos oncológicos tenham melhorado substancialmente nos últimos anos, com o advento de técnicas cirúrgicas aperfeiçoadas, terapias direcionadas contra mutações oncogênicas ou quimioterapia, muitos pacientes apresentam resistência ao tratamento ou, após o tratamento com sucesso do tumor primário, o câncer pode ainda retornar anos ou até mesmo décadas depois em outros órgãos.
Recentemente, com os avanços na compreensão sobre o papel do sistema imunológico na destruição de células tumorais, pesquisadores têm investigado formas de reativar ou redirecionar células imunológicas para detectar e eliminar células tumorais, um tratamento conhecido como imunoterapia. As terapias celulares baseadas em linfócitos T, células imunes com capacidade de destruir células-alvo, geneticamente modificadas para expressar uma molécula que reconhece células tumorais, têm levado a resultados clínicos promissores. Para isto, linfócitos T são purificados do sangue do próprio paciente e modificados com uma proteína que reconhece as células tumorais, possibilitando a sua eliminação. Por meio deste método, pesquisadores então “ensinam” os linfócitos T a reconhecerem as células tumorais. Estes linfócitos, agora denominados linfócitos CAR-T, são introduzidos novamente nos pacientes, e podem eliminar as células tumorais.
Os resultados clínicos mais encorajadores são observados no tratamento de cânceres hematológicos, como linfomas, onde uma proteína-alvo expressa por células tumorais é bem conhecida: a proteína CD19. Porém, tipicamente, pacientes podem não possuir quantidades suficientes de linfócitos T no sangue, ou estas células podem ser disfuncionais tanto devido ao próprio câncer ou ao tratamento, o qual pode tornar os indivíduos imunocomprometidos, inviabilizando a ampla utilização desta imunoterapia com potencial de cura.
Para resolver este problema é necessária uma fonte celular alternativa para a produção de linfócitos T. Células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs) são células-tronco reprogramadas a partir de células maduras da pele ou do sangue, e adquirem a capacidade de produzir qualquer célula do corpo. Portanto, se fosse possível controlar, de forma precisa, a diferenciação das iPSCs em linfócitos T em laboratório, isto potencialmente resolveria diversos problemas das terapias com linfócitos CAR-T atuais. Tal nível de controle sob a diferenciação das iPSCs em linfócitos T não é uma tarefa fácil, pois requer mimetizar, em laboratório, as condições necessárias para o desenvolvimento destas células imunes no nosso corpo.
Em um artigo científico recente, pesquisadores da Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, juntamente com o grupo de pesquisas do professor Edroaldo Lummertz da Rocha, da Universidade Federal de Santa Catarina, contribuíram com o desenvolvimento de uma nova tecnologia para produzir linfócitos CAR-T em laboratório que, pela primeira vez, apresentam características moleculares e funcionais comparáveis às de linfócitos T maduros encontrados no corpo. Utilizando placas de cultura celular funcionalizadas para ativar vias de sinalização importantes para o desenvolvimento dos linfócitos T, assim como a inibição do gene EZH1, o estudo demonstrou a produção de uma população celular com predominância de linfócitos T citotóxicos, capazes de eliminar outras células, e uma pequena fração de linfócitos T auxiliares. Estas células foram denominadas linfócitos EZ-T, no estudo.
Análises computacionais demonstraram a similaridade das células EZ-T com linfócitos T do sangue de doadores saudáveis, e indicaram que estes linfócitos derivados de iPSC expressam genes envolvidos na diferenciação e maturação linfoide. Análises de sequenciamento gênico de células individuais demonstraram o surgimento de linfócitos T de memória após a ativação destas células, evidenciando o potencial de maturação em células importantes para a imunidade antitumoral.
Finalmente, nós testamos se as células EZ-T poderiam ser usadas para tratar câncer. Utilizando animais de laboratório com um tipo de linfoma (linfoma difuso de grandes células B), cujas células tumorais possuem a proteína CD19 na sua superfície celular, a terapia EZ-T mostrou um aumento de sobrevivência significativo e, surpreendentemente, quase que equivalente a terapia utilizada nos hospitais para o tratamento de pacientes, indicando que as células EZ-T podem reconhecer as células tumorais do linfoma com sucesso.
Portanto, a técnica publicada no artigo pode possibilitar a produção em escala de linfócitos CAR-T a partir de uma fonte potencialmente ilimitada de células, as iPSCs, aumentando a disponibilidade desta imunoterapia celular promissora para um grupo maior de pacientes. O estudo foi destacado como artigo de capa da revista Cell Stem Cell.
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