Ciência e Política em tempos de intolerância

Por Vitor Klein                                                                                                                         Professor do Depto de Governança Pública da UDESC

vitor-imagemO que o estado islâmico, constantes crises econômicas e discursos xenofóbicos na política têm a ver com ciência? Para Stephen Toulmin tudo, pois foram esses os ingredientes que vieram a moldar nossa concepção moderna de ciência. Contrariando a noção comum de que com o Iluminismo as sociedades Europeias teriam substituído tradição e superstição por ciência e método, Toulmin faz uma incursão minuciosa na história das ideias para mostrar que, em uma época de intolerância, a busca iluminista por verdades universais teria resultado no estreitamento do debate intelectual.

Em seu livro Cosmopolis: A agenda encoberta da Modernidade (1990), o autoroferece uma releitura da transição entre o Renascimento e a Modernidade, cujo marco são os trabalhos de Galileu na astronomia e mecânica, e de Descartes, na lógica e epistemologia. Para efeito de síntese, vejamos três argumentos pelos quais o autor explica por que o Iluminismo representou o fechamento dos horizontes intelectuais. O primeiro desses argumentos é histórico. Toulmin deixa claro que as contribuições de cientistas e filósofos do Iluminismo trouxeram avanços inegáveis; mas ao colocar o surgimento dessas ideias em perspectiva, o autor relata que esses avanços foram uma resposta às constantes crises que se desenhavam na Europa no século XVII. Se, por um lado, no século XVI a Europa desfrutava da expansão econômica construída com as explorações coloniais, no século XVII essa prosperidade chegaria a um fim. Em 1600 a dominação política da Espanha estava em declínio, a França encontrava-se dividida em linhas religiosas e a Inglaterra mergulhava em uma Guerra Civil. Entre 1619 e 1622 uma crise do comércio internacional gerou desemprego generalizado. Some-se a esses acontecimentos a praga e a Guerra dos Trinta Anos (1618 e 1648), e pode-se perceber o cenário de incertezas onde floresceriam os ideais iluministas.

O segundo argumento contradiz a ideia de que iluministas teriam rompido com as amarras eclesiásticas. No século XVII, a igreja católica entrava em confronto aberto com protestantes. Esse confronto acirrou as hostilidades intelectuais e o resultado foi um espaço menor para a discussão crítica de doutrinas e ideias. O exemplo mais nítido desse estreitamento intelectual, pode ser visto no fato de que enquanto Galileu sofrera perseguição da igreja, Nicolau Copérnico desenvolveu suas ideias com menores constrangimentos.

Por fim, a ideia mais controversa é de que o século das luzes teria desenvolvido uma concepção avançada de racionalidade. Ao contrário de uma concepção plural de ciência, Toulmin relata que, no Renascimento, debates teóricos eram sempre equilibrados por preocupações práticas. Esse representaria o ideal aristotélico de ciência, que entendia que a teoria e a prática devem estar abertas ao escrutínio por meio de diferentes tipos de racionalidades. Cientistas e filósofos Iluministas, contudo, seguirem os passos de Platão, e adotaram uma versão de racionalidade como a busca de certezas absolutas, consolidando assim a ciência e filosofia como um empreendimento altamente teórico e de precisão quase geométrica. Comparada às ideias de emancipação do Renascimento, tais inovações na ciência e filosofia do século XVII parecem, de acordo com Toulmin, menos com uma revolução do que com uma contrarrevolução em busca de certezas absolutas em um mundo incerto.

Cosmopolis mostra que o século das luzes foi um século marcado por intolerâncias pelas quais cientistas e filósofos dificilmente passaram incólumes. Sob o regime de Oliver Cromwell muitos ingleses acreditavam que seus líderes estavam fazendo o trabalho de Deus na terra, nada muito diferente dos fundamentalistas do estado islâmico da atualidade. É difícil, nessas poucas linhas, fazer justiça à riqueza de detalhes e à eloquência da narrativa de Toulmin. Mas, convém indagar o que essas lições do passado nos dizem sobre a ciência e política hoje. Para Toulmin a busca por verdades universais foi superada atualmente por uma concepção plural de ciência, o que mostra que, apesar das justificativas de neutralidade, questões de valores permeiam as preocupações dos cientistas. Se no passado engenheiros construíam canais baseados exclusivamente em critérios científicos ou técnicos, hoje questões de impacto ambiental e ecológico não podem mais ser negligenciadas.

Cosmopolis nos mostra também que a ciência não é imune aos valores de sua época. Nesse caso, o desafio para a ciência e política atual, caso deseje-se preservar os valores humanistas, é um desafio duplo. Por um lado, cabe a vigilância para que a pluralidade e razoabilidade conquistadas na ciência e política não se percam. Essa vigilância é sobretudo importante na atualidade tendo em vista as constantes crises econômicas, o aumento de intolerâncias religiosas e o recrudescimento de identidades nacionais. Por outro lado, a questão pede cautela, pois, como explica Paul Feyerabend, a ciência deve evitar se tornar uma nova tirana. Em vez de dominância e busca de verdades incontestáveis, um debate plural pressupõe tolerância a conhecimentos locais e às diferentes formas de explicar o mundo. Tal desafio deve ser abraçado por cientistas e políticos com igual zelo e dedicação.

Fonte: Toulmin, S. (1990) Cosmopolis: The Hidden Agenda of Modernity, Chicago: The University of Chicago Press.

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