Por Marco Augusto Stimamiglio – Instituto Carlos Chagas – Fiocruz/PR
Estudos científicos que tratam da evolução da humanidade sugerem que a perda de genes foi decisiva na origem de nossa espécie. Estima-se que, entre 2 e 3 milhões de anos atrás, os humanos perderam a função de um gene com a sigla CMAH (proveniente do nome em inglês CMP-Neu5Ac Hydroxylase) . Esse gene permanece atualmente ativo em outros primatas não humanos. A mutação no gene CMAH aumentou a resistência dos nossos ancestrais para correr longas distâncias. Esta ‘vantagem adaptativa’ pode ter sido decisiva na conquista de novos territórios e na fuga de predadores, por exemplo. Naturalmente, é razoável considerar que não foi apenas essa mutação individual que nos trouxe tão atrativa adaptação, mas, possivelmente, também a perda de pelos e a expansão das glândulas sudoríparas tenham ajudado a manter esses ‘maratonistas’ arejados. Seja como for, os cientistas ainda não sabem muito sobre as alterações celulares que nos proporcionaram maior resistência na corrida quando comparados aos macacos.
No caso do gene CMAH, cientistas da Universidade da Califórnia, em San Diego, descobriram há mais de 20 anos essa diferença genética entre humanos e chimpanzés. Nesses últimos, o gene CMAH ajuda a construir uma molécula de açúcar chamada Neu5Gc (um tipo de ácido siálico), que fica na superfície celular (os seres humanos têm uma ‘versão quebrada’ do CMAH e não produzem a mesma versão deste açúcar). Este mesmo time de cientistas relacionou então, há pouco tempo (Okerblom et al., 2018), a perda do gene CMAH com a melhora da capacidade musculoesquelética para o uso de oxigênio e, portanto, maior desempenho em atividade e maior resistência à fadiga. Os cientistas acreditam que essa mutação pode ter fornecido uma vantagem seletiva para o humano ancestral, durante a mudança de clima há 3 milhões de anos (o que transformou as florestas da África em savanas).
Entretanto, um novo estudo publicado em julho de 2019 na renomada revista PNAS, de autoria do mesmo time de cientistas liderado pelo Dr. Varki, aponta para uma desvantagem significativa na perda do gene CMAH: o aumento da susceptibilidade a desenvolver aterosclerose e, consequentemente, um maior risco de sofrer um ataque cardíaco. A aterosclerose, que se caracteriza pelo acúmulo de placas de gordura no interior das artérias e pode reduzir ou bloquear o fluxo sanguíneo, não é um problema para outros primatas (nem mesmo animais em cativeiro sujeitos a alguns dos mesmos fatores de risco que os seres humanos, como pressão alta e falta de atividade física). No estudo, os cientistas descobriram que camundongos modificados para terem uma deficiência semelhante aos humanos no gene CMAH, apresentam incidência de aterosclerose quase duas vezes maior que camundongos sem a mutação. Segundo a equipe do Dr. Varki, o motivo para esse quadro pode ser atribuído a vários fatores, incluindo a hiperatividade de macrófagos (um tipo de glóbulo branco) e a hiperglicemia aumentada nos animais com a mutação do CMAH. A equipe do Dr. Varki sugere ainda que o consumo humano do açúcar Neu5Gc (proveniente da carne vermelha) seja tratado como uma substância estranha no organismo humano, potencializando assim uma inflamação crônica, chamada de ‘xenosialite’.
De qualquer forma, é preciso considerar que os mecanismos genéticos observados nos camundongos mutantes podem não se traduzir da mesma forma em humanos, afinal, alterações observadas em camundongos podem ser muito diferentes daquelas em um ser humano. Outra importante consideração é que este deve ser apenas um dos fatores que contribuem para a aterosclerose e sua importância relativa ainda não foi elucidada.
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