A nova geração de exames de sangue: a resposta para encontrar as primeiras células tumorais?

Por Bruno Costa da Silva – Champalimaud Centre for the Unknown/Lisboa – Portugal

Adaptado de Lui et al., 2020. Annals of Oncology

Em seu livro “The first cell” ou em tradução livre “A primeira célula”, ainda não publicado em português, a médica oncologista Azra Raza expõe de maneira clara o que para ela tem sido, há décadas, a maior limitação dos fundos de financiamento de pesquisa, passando pelos projetos de pesquisa básica e aplicada e chegando aos ensaios clínicos de novos medicamentos antitumorais: o foco na investigação e tratamento de doenças tumorais em fases avançadas. Esta observação é baseada não apenas na opinião pessoal da Dra. Azra, mas em dados sólidos que mostram que uma vez em fases tardias, ou seja, com presença de metástases em gânglios linfáticos e em órgãos distantes, os tumores são, de maneira geral, intratáveis e letais. Visto isso, ela propõe que, se de fato quisermos erradicar mortes por doenças tumorais, devemos aprender não sobre as células que adoecerão os pacientes tumorais até as suas mortes, mas sobre como identificar o aparecimento das primeiras células tumorais. Uma vez que tivermos tecnologias para isso, possivelmente seremos capazes de identificar tumores em suas fases iniciais e de agir na remoção segura e definitiva destas células de forma a garantir a cura de pacientes oncológicos.

As estratégias mais estabelecidas para a detecção e caracterização de tumores são, dentre outras, exames de imagem (ex. tomografia, ultrassom), histopatológicos (ex.
biópsias e raspados de tecidos) e de sangue (ex. PSA para tumores de próstata). Apesar de serem referência no diagnóstico e monitoramento do tratamento de pacientes com tumores, estes métodos apresentam limitações importantes. Enquanto as imagens não conseguem identificar massas celulares menores do que 1 cm (ou 1 bilhão de células!) e distinguir entre células saudáveis e tumorais, exames histopatológicos envolvem procedimentos invasivos para a coleta de amostras. Além disso, marcadores sanguíneos ainda falham em distinguir pacientes com ou sem tumor. Buscando contornar estas limitações e fornecer uma maneira fácil, rápida e eficiente de identificar precocemente pacientes com lesões tumorais, uma nova geração de exames de sangue tem sido largamente estudada e mesmo testada no diagnóstico de pacientes oncológicos. Conhecidos como “biópsias líquidas” estes novos testes buscam detectar em exames de sangue, de forma mais específica, proteínas e ácidos nucleicos (ex. RNA, DNA) provenientes de células tumorais. Ao fazer isso, esses novos testes prometem diagnosticar precocemente e monitorar lesões tumorais a partir de um simples exame de sangue, sem a necessidade de exposição a radiações nos testes de imagem e a procedimentos invasivos para a coleta de amostras para patologia.

Dentre os grandes desafios para o desenvolvimento destes novos testes está a detecção de pequenas quantias de materiais tumorais diluídos em litros de sangue. Este ponto é especificamente desafiador para tumores em fase inicial, que ainda apresentam poucas células em suas lesões. Isto é uma importante limitação, visto que a detecção de tumores em fases iniciais é exatamente o objetivo mais importante para podermos ter tratamentos antitumorais menos agressivos e mais curativos. Outro ponto é, uma vez detectado no sangue, saber dizer com certeza se o material é de origem tumoral ou simplesmente proveniente de qualquer outra célula do nosso corpo. Buscando contornar estes desafios, um trabalho liderado pelo Dr. Michael Seiden, do instituto americano US Oncology e publicado na revista inglesa Annals of Oncology em 30/03/2020, mostrou que o estudo detalhado de fragmentos de DNA presentes na corrente sanguínea pode finalmente revolucionar o diagnóstico de tumores.

Moléculas de DNA servem como o “livro de receitas” para produção de proteínas, que são essenciais para o funcionamento de células e organismos. Mudanças neste código podem resultar tanto na morte quanto na aquisição de novas propriedades pelas células. Dentre outras possibilidades, mudanças no código (ATCG…) de DNA pode modificar a produção e atividade de proteínas e resultar na formação de células tumorais. Outra forma de modificar a conversão DNA-Proteínas envolve a ligação de pequenas moléculas (grupos metil) ao DNA, em um processo chamado de metilação. Este processo, apesar de não modificar a sequência das moléculas de DNA, modificam sua capacidade de serem lidas e decodificadas em proteínas. Vale ressaltar que mudanças de metilação de DNA estão presentes em diversos cenários fisiológicos (desenvolvimento embrionário, envelhecimento, exercício físico) e patológicos (câncer, aterosclerose). Fato importante é que o padrão de metilação de DNA é recorrente em cenários específicos, como por exemplo, em tipos específicos de tumores, podendo ser visto como um código (de metilação) dentro do código (DNA). Baseado nisso, os investigadores liderados pelo Dr. Seiden mapearam amostras de sangue de 6.689 doadores, dentre eles pacientes saudáveis (4.207) e com mais de 50 tipos tumorais diferentes (2.482). Apesar de ainda terem baixa capacidade de detectar precocemente alguns tipos tumorais (mama, esôfago, rins, pulmões, próstata e útero) outros tumores de alta letalidade (cólon/reto, pâncreas, linfoma, e de cabeça e pescoço) puderam ser diagnosticados logo no seu início. Outro ponto importante foi a alta capacidade de distinguir entre os mais de 50 tipos de tumores estudados.

Nos últimos anos, temos observado investimentos crescentes em tecnologias para estudos em larga escala de moléculas de DNA, incluindo testes padronizados e de simples execução. Com isso, temos motivos para acreditar que, uma vez validados em grupos mais amplos e diversos de pacientes, estes testes possam estar disponíveis para uso clínico em exames de rastreio precoce de tumores talvez até o final desta década. Podemos esperar que as primeiras gerações destes testes sejam caras e pouco acessíveis. Além disso, outro ponto importante a ser melhorado diz respeito a oferecer a detecção precoce também para tumores de alta incidência e letalidade, como os de mama, próstata e pulmonares. Entretanto, baseado em outros testes disponíveis na prática clínica, podemos acreditar que aprimoramentos tecnológicos, juntamente com o aumento da procura, possam tornar estes testes mais amplamente acessíveis e confiáveis.

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