Por Ana Carolina Staub de Melo – Grupo de Física Experimental, IFSC
Vamos conversar um pouco sobre a ciência! Faz sentido nos tempos de hoje negar a ciência? Um dos desafios da ciência e da divulgação científica no contexto histórico atual é trazer alguma luz a esse problema que podemos chamar de obscurantismo científico, uma negação da ciência.
…mas nem sempre foi assim… na primeira metade do século XX, uma visão positiva da ciência fervilhava no imaginário coletivo, científico e do senso comum na sociedade austríaca e com sementes bem germinadas em parte da Europa. Se pensarmos em sua versão mais conservadora, podemos dizer tradicional, a concepção positivista da ciência acreditava em uma imagem absolutamente neutra e objetiva da ciência, verdades científicas como certezas incontestáveis, de certa forma “desumanizando” a ciência. O termo positivismo é mesmo para dar uma ideia POSITIVA, um olhar simpático para a ciência! Contudo, o positivismo foi muito além, muitas vezes mistificando a ciência quase como uma divindade e mascarando sua realidade histórica. O que isso quer dizer? Para um positivista os fatos falam por si! Mas isso não é o que a história da ciência nos mostra, vamos ilustrar com um exemplo histórico.
Quando Galileu Galilei (1564-1642) apontou sua luneta para o céu e descobriu a superfície irregular da Lua, com crateras e montanhas, semelhantes à Terra, as fases da Lua, os anéis de Saturno, as Luas de Júpiter e infinitas estrelas invisíveis a olho nu…ele desenhou um novo céu, não imaginado até então (estamos falando do início de 1600). Será que ele estava olhando apenas com o aguçado sentido de visão? Com a mente pura, vazia e limpa como uma folha de papel em branco? De forma imparcial, neutra e objetiva como a visão de ciência positivista romanceava? Não! A resposta é um definitivo Não! Ele não olhou os céus apenas como um ‘observador que registra fatos’, como diria um positivista, mas também como um cientista que interpreta os fatos com os olhos da razão. Galileu acreditava, com base em muito estudo da Teoria Copernicana (Heliocêntrica), que o Sol e não a Terra estava no centro do Universo (o ‘universo’ era finito delimitado pela esfera das estrelas fixas e os planetas conhecidos eram Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno, além do nosso satélite natural: a Lua). Acreditem, isso contribuiu muito para maior liberdade de Galileu ao observar os céus e o fez considerar suas descobertas menos perturbadoras e insensatas, bem diferente da reação de um defensor do Geocentrismo (Terra estática no centro do universo) que imaginava os céus sem mudanças e com características totalmente distintas da Terra. A luneta de Galileu mostrou que isso não era bem assim, a Lua tinha muito mais semelhança com a Terra do que se acreditava além das inúmeras descobertas celestes que um olho desarmado não era capaz de enxergar… ideias que não se conciliavam com o modelo planetário geocêntrico e, principalmente, com as interpretações da Bíblia pela Igreja Católica. E o cenário de uma revolução científica emergia refazendo a história da ciência que está longe de ser estática como poderia adjetivar um positivista… renascia o modelo planetário heliocêntrico.
Considerando esse episódio histórico da Física, podemos pensar na ciência como uma atividade humana. Galileu não acreditava no modelo planetário aceito na época, com a Terra estática no centro do universo, o que foi bastante ousado, pois esse modelo estava vigente há treze séculos. Podemos dizer assim que Galileu seguiu seu instinto científico, baseado em seus estudos das obras científicas de Nicolau Copérnico (1473-1543) entre elas “Sobre a revolução das órbitas celestes” (De revolutionibus orbium caelestium) publicada em 1546. Na ciência real, vemos o caminho não linear, tortuoso muitas vezes, pois Galileu, por exemplo, foi considerado herege por suas ideias e condenado à prisão domiciliar, dificultando a defesa do modelo heliocêntrico…Vemos também que a ‘intuição’ dos cientistas podem estar presentes nas descobertas científicas e, por fim, esse exemplo desconstrói a ideia de verdades absolutas dos positivistas, dando lugar às verdades históricas e uma ciência passível de ser contaminada culturalmente e socialmente como, por exemplo, na época de Galileu a religião era o árbitro supremo das ideias científicas.
Com esse exemplo humanizamos a ciência, fazendo uma crítica à imagem positivista, como fizeram filósofos da ciência como Thomas Kuhn em sua obra “A Estrutura das Revoluções Científicas” de 1962. Mas não podemos nos equivocar e simplificar exageradamente as descobertas científicas e incentivar uma descrença na ciência! Uma abordagem didática responsável sobre a natureza da ciência possibilita que não se incorra nos perigos de um obscurantismo científico ou, em termos técnicos, em um relativismo epistêmico! Mas… o que o relativismo epistêmico realmente significa e porque é tão ameaçador?
Você já se imaginou em uma conversa, ou para termos uma noção mais dramática desse tema e dos seus perigos, em um júri popular sobre um crime hediondo sem um critério objetivo para decisão? Se pensarmos que tudo é muito subjetivo, ninguém tem razão sobre nada, porque temos que considerar a experiência de vida, a história de cada um, as motivações pessoais e, por isso, o certo e o errado são relativos… caminhamos no sentido da escuridão. As decisões não podem ser arbitrárias, quer dizer, baseadas em mera opinião do sujeito, subjetivas ou relativizadas! Na ciência, Galileu não inventou suas ideias. A razão científica que guiou suas observações dos céus surgiram de outras evidências empíricas e de muito estudo. A interpretação de um relativismo epistêmico é a de que não há consenso nos impasses, pois as verdades são relativizadas, a verdade é um ideal impossível.
O relativismo epistêmico, no limite, nega a verdade. Por isso, compartilhar critérios distintivos da ciência em relação a outras formas de conhecimento, como o senso comum, é demarcar conhecimento de opinião que, na educação científica, pode contribuir significativamente para que o relativismo epistêmico não ameace um conhecimento historicamente estabelecido, o conhecimento científico. A descrença na ciência pode servir a ideologias autoritárias e ditatoriais e, por fim, definir escolhas e posicionamentos sociais e políticos radicais. Isso porque, ao enfatizar características de consenso presentes em todas as atividades humanas, a ciência pode ser vista como mais um exemplo de atividade subjetiva, como qualquer outra forma de conhecimento humano. Esse destaque à subjetividade alerta para os perigos do relativismo epistêmico no contexto atual, no qual a sociedade tem acesso fácil e imediato a diversas fontes de informação, questionáveis, quando não equivocadas e com distorções propositais da realidade.
As implicações do relativismo epistêmico têm exemplos de destaque como as controversas posições sobre o aquecimento global, que de certa forma minimizam a destruição ambiental; a oposição à vacinação, da qual decorre problemas sociais de saúde pública; a proliferação de teorias da conspiração, que em muitos casos mascaram posicionamentos políticos de autoritarismo; o renascimento do terraplanismo com intenções ideológicas de renúncia à ciência[1].
A ciência não é uma construção social e deve-se fazer uma demarcação clara entre o contexto de criação, onde a imaginação tem liberdade para voos audaciosos e destemidos, e o contexto de justificação, onde o contraste/confronto com a natureza é o crivo desse árduo esforço intelectual da ciência.
No texto “Redescobrindo um velho fármaco para o tratamento do novo coronavírus (SARS-CoV-2)” [2] do Cientistas Descobriram Que… podemos ter ideia do quanto um estudo científico passa por etapas criteriosas e rigorosas até se legitimar como confiável: “Para um medicamento ser lançado no mercado farmacêutico, ele precisa cumprir diversas etapas de pesquisas e testes até ser aprovado pelo órgão competente do país produtor. O processo de regulamentação de um novo medicamento é longo, rigoroso e custa muito caro para a indústria farmacêutica. Para se ter ideia, são necessários, em média, 15 anos e mais de 500 milhões de dólares para que um novo fármaco alcance as prateleiras das farmácias.”
No campo da Física, Cientistas Descobriram Que… os bósons de Higgs são partículas que compõem o campo de energia invisível no universo. Sua existência foi confirmada experimentalmente em julho de 2012, esperando mais de 40 anos para ser um modelo da ciência legitimado na comunidade científica. Com o maior acelerador de partículas do mundo, do Laboratório de Pesquisas Nucleares (CERN), foi possível a detecção experimental de partículas compatíveis com o modelo do bóson de Higgs. Esse modelo contribuiu para compreender, por exemplo, o universo, que até hoje se pensava vazio, mas, na verdade, é um ‘mar’ de bósons de Higgs e outras partículas elementares, ressignificando o modelo padrão da física de partículas. Essa descoberta científica pacientemente estabelecida, com muito esforço intelectual e experimental, é mais um exemplo ilustrativo de que o fato de a ciência não espelhar fielmente a realidade não significa enfraquecer sua característica crucial que é a objetividade. Significa que a verdade tem um outro tom, ela é provisória e está sempre ‘por vir’. O bóson de Higgs é um modelo científico que se ajusta muito bem às evidências experimentais e sua detecção não vai estagnar a ciência, mas sim incentivar os estudos para novas descobertas sobre os mistérios do universo e sua origem.
A ciência é uma atividade humana que caminha no sentido da objetividade, relativizá-las nos tempos atuais serve a quem e a quais objetivos?
Para saber mais, acesse os artigos originais utilizados para produção desse texto: