O que somos nós?

Por Giordano W. Calloni, Dpto de Biologia Celular, Embriologia e Genética da UFSC

Fred Tomaselli, Airborne Event, 2003. Obra de arte realizada com folhas, colagem de fotos, guache, acrílico e resina sobre painel de madeira.

Meu caro leitor, o título do presente texto é para soar tão provocativo quanto realmente é. Foi apenas após 10 anos ministrando a disciplina de Biologia Celular na Universidade Federal de Santa Catarina que percebi como pequenas palavras podem nos trair e perpetuar uma falsa concepção do que realmente somos. No ano de 2019, eu e cerca de mais 15 alunos do curso de Biologia estivemos envolvidos em um projeto que consistia em converter salas de aula em uma grande célula em escolas de Florianópolis, SC. Durante nossas exposições a estudantes das mais diversas idades, percebi que meus próprios pupilos iniciavam suas apresentações com a seguinte sentença:

– Pessoal, vocês sabem que nós todos possuímos células?

Percebi então, que eu havia falhado em passar um conceito primordial aos meus próprios alunos: a concepção de que não possuímos células, não temos células, mas sim que nós SOMOS células. Talvez possa parecer uma grande obviedade, mas essa aparente pequena diferença entre ter e ser encobre outras profundas questões de concepções a respeito do que somos ou podemos ser.

Somos constituídos por aproximadamente 70 trilhões de células. Na natureza, a grosso modo, existem dois tipos de células: as procarióticas (representadas por microorganismos, como as bactérias e as arquéias) e as eucarióticas (representadas por todos os demais organismos: os protozoários, fungos, plantas e animais). Os procariontes são definidos por não terem um envoltório nuclear verdadeiro, assim o material genético está no citoplasma. Já os eucariontes, além de possuírem um envoltório nuclear, possuem um diversificado sistema de endomembranas com funções distintas.

Durante muito tempo, os pesquisadores estimaram que a razão entre células procarióticas e eucarióticas que nos constituem seria de 10:1. Ou seja, haveria cerca de 10 células procarióticas para cada célula eucariótica. Entretanto, em 2016, Cientistas descobriram que, na verdade, a razão de células procarióticas e eucarióticas em “nosso corpo” é de 1:1. Quantitativamente isso corresponde a 38 trilhões (3,8 x 1013) de células procarióticas e de 30 trilhões (3,0 x 1013) de células eucarióticas. Os glóbulos vermelhos (ou hemácias), que percorrem nosso sangue, correspondem a 70% da parte eucariótica que somos. E espantosamente não possuem núcleo!

Sim, exatamente isso! As hemácias humanas são células eucarióticas que perdem seu núcleo durante seu processo de produção que ocorre na medula óssea. Quer dizer que antes de chegar na corrente sanguínea elas perdem todo o seu material genético. Portanto, 21 dos 30 trilhões de células eucarióticas que somos não possuem DNA. Curioso e fascinante não?

Considerando que: 1) quantitativamente os procariotos correspondem a mesma proporção de células eucarióticas em nossa estrutura; 2) sequer existiríamos ou teríamos a funcionalidade que temos sem a parte procariótica; 3) que 100% da parte procariótica possui material genético, enquanto 70% da porção eucariótica é desprovida de DNA; 4) bactérias simbiontes ancestrais tornaram-se as mitocôndrias de nossas células e carregam um material genético circular tipicamente procariótico, gostaria de provocar o leitor com a seguinte pergunta: O que somos afinal?

Classicamente considera-se que as células procarióticas que “habitamnosso corpo são simbiontes, ou seja, organismos que possuem uma relação simbiótica mutualística (em que ambos organismos têm vantagens) nessa associação. Minha proposta aqui é um pouco ousada e gostaria de convidar o leitor a ver-se de forma distinta da visão clássica de ser “habitado” por outros seres como se fosse colonizado por alienígenas. Percebam que o que faço aqui é retirar a concepção amplamente aceita de posse, ou seja, a de que possuímos seres ou que abrigamos células de outras origens em nosso corpo. Assim, proponho ao leitor enxergar-se como como um ser celular complexo, uma quimera de células procarióticas e eucarióticas.

Essa mudança de concepção poderá trazer diversas consequências teóricas e práticas que irei explorar em postagens futuras do CDQ. A primeira delas é o enorme desafio de dar a mesma importância e/ou valorizar igualmente os neurônios do seu cérebro e as bactérias do seu intestino.

Para saber mais:

4 comentários sobre “O que somos nós?

  1. Excelente texto Professor Giordano! Quando li a pergunta do título logo pensei no documentário “A célula – o reino oculto” e pensei comigo sobre discussões na disciplina de biologia celular na universidade federal de santa catarina. As palavras do apresentador do documentário: Nós somos células! Nós somos extremamente dinâmicos e estamos em permanente movimento.

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